I – Anarquismo Mítico e Filosófico
Como todo pensamento político, o anarquismo tem tido diferentes pontos de
vista. Uma significativa quantidade de intelectuais situam o nascimento do
anarquismo no século XIX, que podemos chamar de Metamorfose de Ovídio, uma
menção a um sistema político de características similares que existira no
início de uma Idade de Ouro, onde não havia leis, juízes, nem nada que se
pareça para legislar aos cidadãos, posto que entre eles havia uma visão similar
de mundo. Também não podemos esquecer de comunidades anarquistas como a dos
seguidores do Patriarca Gnóstico Carpócrates de Alexandria, que fundou
comunidades cristãs no norte da África e na Espanha no século II. Diferente do
anarquismo filosófico do século XIX, que situa o anarquismo no final da
história humana, como um processo evolutivo, tal como foi formulado de maneira
similar o paraíso comunista de Karl Marx.
Dentro desta corrente do século XIX, se destacaram autores como William Godwin,
Proudhon, Max Stirner, Bakunin, etc.., Stirner, o mais importante expoente do
anarquismo individualista, foi contra não só o Estado, mas também contra a
Sociedade; foi mais longe do que qualquer pensador anarquista convertendo o
homem no Absoluto, no nada criador, em um ser belicoso por natureza que luta
pela propriedade de si mesmo, a "propriedade do único", rejeitando o
Estado, a burguesia, as instituições sociais e educativas, as famílias e as leis.
Destruir as ilusões para descobrir a si mesmo e ser o dono de si mesmo.
Sua principal obra, "O único e sua propriedade", foi recebida com
hostilidade por Karl Marx, que a viu como ameaça a todo seu materialismo
dialético, ao que se dedicou com esmero a refutar suas ideias. Assim, o
anarquismo filosófico começa a ver-se como ameaça ao marxismo.
Posteriormente, será Bakunin quem desafiará o crescimento do comunismo. Este
pensador anarquista fez a diferença com os outros, posto que o dito movimento
conseguiu uma certa presença na luta social graças a ele. É impensável o
sindicalismo anarquista sem Bakunin (recordemos a FORJA na história Argentina,
e a famosa "Semana Trágica" de 1919). Europa quiçá nunca teria
presenciado um movimento político anarquista organizado, se não fosse pelo
trabalho ativo de Bakunin.
II – Anarquismo, Liberalismo e Socialismo
O surgimento do anarquismo filosófico está ligado à crise
social pós-medieval. A burguesia começa a estabelecer relações com as velhas
aristocracias, enquanto demoliam os grêmios e associações que protegiam os
pequenos produtores. Com o crescimento do comércio e as manufaturas, os antigos
grêmios medievais eram um grande obstáculo a esse novo desenvolvimento. Os
pequenos artesãos e produtores agrícolas começaram a se encontrar desamparados
frente o crescimento da competência, ao passo que crescia os direitos
monopolistas nas mãos de grandes empresas industriais, agrícolas e comerciais.
Surgiram na época de transição duas correntes de protesto: o Liberalismo Radical,
que pretendia reformas parlamentárias para conter o poder do Estado, e o
anarquismo. Os liberais (Locke) consideravam a propriedade como um direito
natural, e atribuíam a responsabilidade ao Estado de proteger a mesma de
ataques internos e externos, permitindo a livre troca de mercadorias. Os
anarquistas, no entanto, diziam que o Estado protege a propriedade dos ricos, e
que as leis favorecem a concentração da propriedade. Para os anarquistas, se
devia criar uma sociedade igualitária de produtores pequenos e economicamente
autônomos, livres de privilégios ou distinções classistas, onde o Estado seria
desnecessário.
O anarquismo teve sua primeira grande derrota quando Marx assume a Primeira
Internacional, depois de debates acalorados com Bakunin. Essa hegemonia se
manteve até 1991, com a desintegração da URSS. Desde então, surgiram novas
correntes do pensamento anarquista, mas de todas elas, a que aqui queremos
resgatar por sua nova orientação é o anarquismo ontológico, que tem o britânico
Peter Lamborn Wilson, mais conhecido como Hakim Bey, como seu principal
expoente.
III – O Anarquismo Ontológico de Hakim
Bey
Torna-se dificultoso definir o conceito de anarquismo ontológico, uma vez
que é uma forma de encarar a realidade, onde não se necessita teorias fechadas
em si mesmas, mas ações que tendem a tirar o homem de preconceitos modernos. O
anarquismo ontológico é um desafio aberto a toda sociedade atual, onde o
"Eu" é posto à prova, para ver se é capaz de questionar certos
comportamentos e pensamentos que se manifestam mecanicamente. Sua linguagem
principal é o que Hakim Bey chama de "terrorismo poético", uma forma
brusca mas profunda de rejeitar as convenções de toda sociedade organizada em
torno de ilusões.
Ante a crise espiritual que afeta principalmente o Ocidente, Hakim Bey propõe
um nomadismo psíquico, um retorno ao paleolítico, sendo mais realista que
simbólico esse último conceito. Como ele diz, "se busca a transmutação da
cultura impura em ouro contestatário". Sua frase principal é "O caos
nunca morreu", onde, para ele, seria o espaço onde a liberdade se vive
plenamente, enquanto vê a Ordem como a apresentação de uma série de estruturas
políticas, culturais, educativas e policiais; em si, limites impostos à mente
que deve possuir plena liberdade da natureza. Essa ordem atual não faz mais que
aprisionar o homem, leis de uma civilização que está parada no tempo, para
congelar e matar o Espírito.
Bey nos diz que o Caos é derrotado por jovens deuses, moralistas, por
sacerdotes e banqueiros, senhores que querem servos e não homens livres.
Seguidor de grupos sufis não muito ortodoxos, apresenta a jihad espiritual, a
rebelião contra a civilização moderna.
O modelo social de luta que apresenta Hakim Bey é o da quadrilha, do grupo de
saqueadores que tem sua própria lei. Esse é o sentido do paleolítico, o grupo
de caçadores e coletores que percorriam pelos bosques e desertos de uma terra
antiga sem deuses tiranos.
Alguns poucos anos atrás, estreou um filme no qual um dos realizadores foi
influenciado pelos escritos desse autor. O filme se chamava "O Clube da
Luta", onde se descreve um homem submisso ao sistema econômico e moral,
que se depara a uma ruptura mental que o leva a criar um mundo real onde
poderia estar fora do sistema, burlando o mesmo continuamente.
Isso nos leva a estudar a contribuição que consideramos a mais importante da
obra de Hakim Bey: o conceito de TAZ, ou seja, a Zona Autônoma Temporária.
IV - Zona Autônoma Temporária (TAZ)
Existe uma coincidência semântica com o pensador tradicionalista italiano,
Julius Evola: Ambos autores utilizam o termo "rebelião" como força de
reação aos sintomas de declínio espiritual e material do homem.
Para Hakim Bey, o projeto de uma revolução implica um processo de
transformações onde se vai de uma situação caótica até uma nova Ordem. O escritor nos diz: "Como é que todo mundo sempre termina
por endireitar-se? Por que sempre toda revolução segue uma reação, como uma
temporada no inferno?" (1) Dessa maneira, uma Ordem dentro do Kali Yuga
implicaria retornar a uma forma de conservadorismo decadente. Implica a
frustração inicial de ideais revolucionários, ante as reações naturais dos que
querem voltar as coisas ao normal, saindo do Caos.
H.B. utiliza os termos "rebelião", "revolta" e
"insurreição", que implicariam "um momento que salta por cima do
tempo, que viola a "lei" da história". Neste caso, estamos muito
perto do conceito evoliano de "idealismo mágico”.
Completando essas ideias: enquanto a revolução é um processo que vai do caos a
uma ordem determinada, a rebelião que apresenta H.B. é temporal, é um ato
extra-ordinário, que busca mudar o mundo e não se adaptar a ele, que busca
viver a utopia e não se conformar com uma ordem.
Mas, se não há uma ordem determinada a se criar por partes dos anarquistas
ontológicos, de onde parte a rebelião e para onde ela retorna uma vez desatada?
Aqui H.B nos fala da TAZ, as Zonas Autônomas Temporárias, que é um lugar físico
que permite justamente um desenvolvimento da liberdade interior. Devemos
esclarecer que a TAZ não é um conceito abstrato, mas real e histórico.. embora
sempre quis se manifestar fora da História.
Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente
o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe
é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa
Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes
que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com
180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia
nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que
hoje estamos submetidos para poder
pertencer a um determinado sistema social.
Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente
o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe
é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa
Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes
que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com
180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia
nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que
hoje estamos submetidos para poder pertencer a um determinado sistema social.
Eles souberam criar um sistema fora do Sistema, ou seja, um anti-sistema, o
caos, o lugar onde o anarquismo ontológico poderia encontrar uma causa para seu
desenvolvimento. Se falarmos da gente que compunham os barcos piratas,
descobrimos que eram de raças distintas: negros, brancos, asiáticos; distintas
religiões, diferentes educações e classes sociais das quais foram deserdados;
todos estavam em pé de igualdade, mas não uma igualdade coletivista, mas
guerreira.
Esta TAZ, essa Zona Autônoma Temporária que foi a Ilha de Tortuga, não durou
muitos anos, e essa é justamente a característica da TAZ, sua limitação no
tempo, que segundo H.B. na melhor das hipóteses pode durar a vida de uma
pessoa, mas não mais que isso, posto que o Sistema irá em sua busca para destruí-la.
Vejamos como o autor defina a TAZ:
“O Taz é como uma revolta que não se
envolve com o Estado, uma operação guerrilheira que libera uma área – de terra,
de tempo, de imaginação – e então se autodissolve para reconstruir-se em
qualquer outro lugar ou tempo, antes que o Estado possa esmagá-la.” (2)
É a estratégia da barricada que quando está a ser destruída, é abandonada e
levantada em outro lugar. É o âmbito da internet, onde se entra para criticar o
sistema através de uma página da web e quando essa cai, volta a aparecer em
outro lugar.
Mas, sigamos com os exemplos históricos que H.B. utiliza para descrever o
conceito de TAZ. Neste caso, citamos um parágrafo completo, com o objetivo de
que se possa apreciar todos os elementos vulgares, artísticos, esotéricos e poéticos
do pensador, que parece mesclar a realidade com a fantasia, com a utopia e com
o oculto. Esta forma de escrever, que como mencionamos acima, é definido como
"terrorismo poético":
“Por isso, dentre os experimentos do
período entre-guerras eu me concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é
menos conhecida e não foi criada para durar.
Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta, mulherengo,
doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e mal- educado, emergiu da
Primeira Guerra Mundial como herói e com um pequeno exército à sua disposição e
comando: os arditi. Ávido por aventura, ele decidiu capturar a cidade de Fiume,
na Iugoslávia, e entregá-la para a Itália. Depois de uma cerimônia necromântica
com sua amante num cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e
foi bem-sucedido sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália
recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.
Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por quanto tempo
conseguiria mantê-la. Ele e um de seus amigos anarquistas escreveram a
Constituição, que instituía a música como o princípio central do Estado. A
Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas dos estaleiros de
Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos antigos piratas que em tempos
passados viviam nas ilhas da região e saqueavam os navios venezianos e
otomanos. Os modernos uscochi foram bem-sucedidos em alguns de seus golpes
malucos: vários polpudos navios mercantes italianos de repente deram à
República um futuro: dinheiro em seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros,
anarquistas (D’Annunzio se correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados
sem pátria, homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira
e os ossos cruzados dos piratas - depois roubado pela SS) e excêntricos
reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofistas e seguidores do
vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não acabava nunca.
Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia
um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade
do governo. Dezoito meses mais tarde, quando o vinho e o dinheiro haviam
terminado e a frota italiana finalmente apareceu e arremessou alguns projéteis
contra o Palácio Municipal, ninguém tinha energia para resistir.
(...). Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas (ou o único exemplo
moderno), e também, talvez, algo muito próximo da primeira TAZ moderna.” (3)
V – A TAZ na História Argentina
Chegando a este ponto, nos perguntamos: pode se falar um exemplo da TAZ em
nossa história argentina? H.B. pode ter citado um exemplo para trazer em seu
trabalho? A resposta é afirmativa, e encontramos nada mais e nada menos que em
nossa obra-prima da literatura argentina: El Martín Fierro.
Essa obra, cujo protagonista é uma criação do autor, representa o confronto
entre a "Civilização" e a "Barbárie", e forçando um pouco
os termos, entre a Modernidade e a Tradição. O tempo em que se desenvolve o
poema guacheso é durante o período da organização nacional, entendido este como
a adaptação de um país de caráter católico, livre e guerreiro, ao sistema
constitucional liberal, laico, de dessacralização do poder político em
ideologias que sustentaram e reforçaram a Modernidade.
Martín Fierro é o arquétipo da "Barbárie": o homem que não aceita uma
"Civilização" alheia a sua cultura, que quer obrigá-lo a adotar uma
nova forma de vida, sob o risco de perdê-la se não obedecer. Por tal motivo,
Martin Fierro foge para além da fronteira sul, para viver com os índios. Lemos
na obra:
“Yo sé que los caciques/amparan a los cristianos,
y que los tratan de
“hermanos”
Cuando se van por su gusto
A que andar pasando sustos …
Alcemos el
poncho y vamos”.
A Fronteira, os acampamentos, são a TAZ que existiu na Argentina. Ali, os
homens que estavam fora da lei, encontraram a liberdade: foram aqueles que
desertavam do novo exército constitucional, ladrões de gado, assassinos,
escravos, rapaz jovens que fugiam de suas casas optando pela liberdade que
existia para além da fronteira. Também existiram exemplos de mulheres que
encantadas com os índios, tiveram famílias, e que ao regressar à civilização,
não puderam se acostumar e regressaram com os índios. Martín Fierro nos descreve
a vida livre:
“Allá no hay que trabajar
Vive uno como un señor
De cuando en cuando un malón
Y
si de él sale con vida
Lo pasa echado panza arriba
Mirando dar güelta el sol.”
A verdade é que não havia muita diferença entre o acampamento e o meio rural. A
diferença começou a ampliar-se na medida que cresciam as leis e a coerção e se
perdia a liberdade que o gaúcho conhecia. A fronteira passa a se tornar não só
uma válvula de escapa para tensões sociais, mas também existenciais.
Mas do arquétipo passemos também a um exemplo concreto, a um homem que a
literatura retratou várias vezes em novelas, contos e obras de teatro, ao qual
se acrescentou muitos relatos acerca do lugar que utilizou para escapar da
"civilização". O homem que escolhemos aleatoriamente se chamou
Cervando Cardozo, conhecido como Calandria por sua bela voz para o canto. Foi
um gaúcho que nasceu em 1839 e faleceu - morto pela polícia- em 1879. Teve uma
vida como qualquer um de seu tempo, mas a diferença é que decidiu lutar quanto
a institucionalização política do país começou a querer roubar sua liberdade.
Ele se incorpora com a última montonera da histórica oficial, a comandada pelo
caudilho entrerriano Ricardo López Jordán, ao que a histórica oficial o acusa
de ter participado do assassinado do caudilho Justo J. de Urquiza, que até
então era o principal responsável pela transformação política do país.
Calandria combateu junto a López Jordan, e ao ser derrotado é obrigago a
incorporar-se a um exército de fronteira. Calandria não aceita e deserta. Nasce
assim sua vida de fora da lei, que a viverá dentro da província de Entre Rios
na denominada Selva de Montiel, onde as forças policiais jamais poderiam
capturá-lo.
Aqui entramos num novo TAZ: o bosque.
Em muitas tradições, os bosques representam lugares proibidos, onde abundam
espíritos, criaturas fantásticas e onde se corria perigo de encontrar uma morte
horrenda. um dos exemplos mais conhecidos por todos são os bosques de Sherwood
onde encontraram refúgio vários "fora da lei" que logo seguiriam o
famoso Robin Hood.
Em nossa terra, os bosques representam o lugar onde os gaúchos rebeldes se
escondiam, donde os feiticeiros, curandeiros, bruxas e deformes tinham seu
covil. É também o local onde os aquelarres se realizavam, que bem expressados
estão em nossas canções populares; por exemplo em La Salamanca de Artudo
Dávalos, diz o refrão "Y
en las noches de luna se puede sentir, / a Mandinga y los diablos
cantar”, o Bailarín de los Montes de Peteco Carabajal, en su estribillo
también dice: “Soy bailarín de los montes / nacido en la Salamanca".
Aqui faremos um breve aprofundamento desse tema de La Salamanca: originalmente,
a lenda parte da Espanha, da região de Salamanca. Ali se encontravam as famosas
grutas dos alquimistas, magos, cabalistas, gnósticos e outros, se reuniam em
segredo para evitar a perseguição da Inquisição. Como ali se efetuaram todo
tipo de ensinamentos de caráter iniciático, permaneceu uma lenda negativa
impulsionada pelo clero católico da época, de que ali se invocava o demônio, e
é por isso que todo o processo daquele que ingressa na Salamanca até chegar a
frente do Diabo é de caráter iniciático. É por isso que se diz, na atualidade,
que existem duas entradas para Salamanca com resultados diferentes, uma de
ascensão e outra de descida. A Salamanca é para a TAZ argentina um modelo de
iniciação, conquistando "a outra porta".
Retomando, a Selva de Montiel (chamada assim pelo aspecto impenetrável da
mesma) foi o refúgio de muitos, como Calandria, que resistiram à mudança pelo
apego à liberdade e à tradição. Estes rebeldes conservaram em pequena escala
parte da figura que representaram em outro momento os Caudilhos, posto que
tinham um respeito e compreensão para com o povo e esses acabaram sendo
cúmplices silenciosos das aventuras desses forasteiros.
Cito aqui um trecho da peça
"Calandria" de Martiniano Leguizamón, estreada em 1896. Nesse
fragmento, se fala do gaúcho rebelde frente a tumba de sua mãe:
“¡Triste destino el mío! …. ¡Sin un rancho, sin familia, sin un día de
reposo! … ¡Tendré al fin que entregarme vensido a mis perseguidores! … Y ¿pa
qué? ¿Por salvar el número uno? … ¿Por el placer de vivir? … ¡No, si la
libertad que me ofrecen no had ser más que una carnada! No; no agarro. ¡Qué me
van a perdonar las mil diabluras que le he jugao a la polesía! ¡Me he reído
tanto de ella y la he burlao tan fiero! … (Riendo) ¡La verdá que esto es como
dice el refrán: andar el mundo al revés, el sorro corriendo al perro y el
ladrón detrás del jues! … ¡Bah … si el que no nació pa el cielo al ñudo mira pa
arriba!” (4)
Calandria
não foi o único desses gaúchos rebeldes. Nosso Atahualpa Tupanqui foi um gaúcho
rebelde nos anos 30. Depois da uma falida revolução radical que participou,
fugiu para Entre Rios e se escondeu na Selva de Montiel. Foi nessa época que
compôs a canção "Sin caballao y en Montiel".
Mas avancemos mais nessa construção da TAZ em nossa terra. Se o gaúcho rebelde
é uma representação, em pequena escala, de Caudillo, onde podemos encontrar uma
figura de tal magnitude que se encaixe com o modelo de anarquismo ontológico?
Podemos encontrar verdadeiras surpresas em nossa história nacional. Uma delas é
a do jovem Juvan Facundo Quiroga, o "Tigre de los Llanos", que pelas
descrições que fizeram de sua pessoa, nos atrevemos a dizer que foi um dos
primeiros líderes anarcas que houve em nossa história nacional.
Sarmiento, que conheceu Quiroga em sua etapa jovem
- não a adulta onde se começaria a preocupar-se com a forma de organização a
ser alcançada com a Confederação Argentina - em seu "Facundo", entre
o ódio e a admiração escreve essas palavras sobre Quiroga:
“Toda la vida publica de Quiroga me parece resumida en estos datos. Veo en
ellos el hombre grande, el hombre genio a su pesar, sin saberlo él, el César,
el Tamerlán, el Mahoma. Ha nacido así, y no es culpa suya; se abajará en las
escalas sociales para mandar, para dominar, para combatir el poder de la
ciudad, la partida de la policía. Si le ofrecen una plaza en los ejércitos la
desdeñará, porque no tiene paciencia para aguardar los ascensos, porque hay
mucha sujeción, muchas trabas puestas a la independencia individual, hay
generales que pesan sobre él, hay una casaca que oprime el cuerpo y una táctica
que regla los pasos ¡todo es insufrible!. La vida de a caballo, la vida de
peligros y emociones fuertes han acerado su espíritu y endurecido su corazón;
tiene odio invencible, instintivo, contra las leyes que lo han perseguido,
contra los jueces que lo han condenado, contra toda esa sociedad y esa
organización de que se ha sustraído desde la infancia y que lo mira con
prevención y menosprecio. (…) Facundo es un tipo de barbarie primitiva; no
conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras …” (5)
E como todo anarca, Quiroga não era um dos homens que queriam sentar em uma
mesa no escritório a governa o que muito havia lhe custado conseguir. Suas
batalhas nunca finalizaram. Citamos novamente a Sarmiento:
“Quiroga, en su larga carrera, jamás se ha encargado del gobierno
organizado, que abandonaba siempre a otros. Momento grande y espectable para
los pueblos es siempre aquel en que una mano vigorosa se apodera de sus
destinos. Las instituciones se afirman o ceden su lugar a otras nuevas más
fecundas en resultados, o más confortables con las ideas que predominan. (…)
“No así cuando predomina una fuerza extraña a la civilización,
cuando Atila se apodera de Roma, o Tamerlán recorre las llanuras asiáticas; los
escombros quedan, pero en vano iría después a removerlos la mano de la
filosofía para buscar debajo de ellos las plantas vigorosas que nacieran con el
abono nutritivo de la sangre humana. Facundo, genio bárbaro, se apodera de su
país; las tradiciones de gobierno desaparecen, las formas se degradan, las
leyes son un juguete en manos torpes; y en medio de esta destrucción efectuada
por las pisadas de los caballos, nada se sustituye, nada se establece”. (6)
Aqui vemos
com claridade os conceitos de H.B. de psiquismo nômade e de retorno ao
paleolítico.
VI – Anarquismo Ontológico e Tradição
Até aqui, temos traçado um paralelo entre o conceito de TAZ de H.B e nossa
história nacional. Nossa tarefa agora é ver aonde o anarquismo ontológico pode
nos levar.
Esta postura acreditamos que é positiva para o impulso de um
niilismo ativo, que consistirá em construir bases de ação que são a TAZ: sua
ação é desconstrutora, de rejeição aos valores e estruturas do pensamento da
Modernidade. O anarquismo ontológico tem sabido descobrir na história os
forasteiros do sistema, e esse tema é uma eterna preocupação da filosofia
política contemporânea. Por exemplo, um dos pensadores mais importantes do
neoliberalismo, Robert Nozick, (7) recentemente falecido, nos fala de um estado de
natureza onde passo a passo se vai construindo um Estado Liberal ideal para a
sociedade atual. Nos fala de uma Associação de Proteção Dominante, onde uns
trabalham e outros tomam o papel de defender a comunidade dos agressores
externos. De lá, se passa para o Estado ultramínimo, que tem como objetivo
justamente incorporar os forasteiros.. os foras da lei. Supostamente, para
Nozick, os forasteiros se integrariam à sociedade ao lhes ser oferecida
proteção gratuita para que possam viver em paz, o que chamou princípio de
compensação. Essa tentativa teórica fracassou, sobrando-nos exemplos reais para
comprovar historicamente. O anarca não necessita que nada o projeta. E é livre
para viver e morrer em sua própria lei. (8)
O Anarquismo Ontológico tem tido uma importante repercussão entre os jovens, e
essa ideia do TAZ foi levada ao cinema. O filme "O Clube da Luta",
com Edward Norton e Brad Pitt como atores principais, nos apresenta uma
atmosfera de uma geração de jovens sem ideais, com futuro incerto e, sobretudo,
com a revelação absoluta de sua própria solidão no mundo. Ali, como em Doctor Jekill
e Mister Hyde, há um homem que não se atreve a se libertar de suas próprias
correntes, a viver o mundo sem tratar de controlá-lo.
Um filme como Clube da Luta nos mostra que estamos sós, que não há ninguém lá
fora com os braços abertos nos esperando. Um dos personagens desse filme, Tyler
Durden, em seu discurso onde inaugura sua TAZ, o Clube da Luta, vivendo em um
edifício abandonado em ruínas e rodeado de jovens rebeldes, diz: "Eu vejo
no Clube da Luta os homens mais inteligentes e fortes, vejo tanto potencial e
vejo que isso se desperdiça. Meu Deus, uma geração vendendo gasolina, servindo
mesas, escravos do colarinho branco e todos esses anúncios que promovem o
desejar de carros e roupas com marcas de um tipo que nos dita como devemos nos
ver. Fazemos trabalhos odiosos para comprar o desnecessário, filhos no meio da
História sem propósito nem lugar..
Como nos disse com certeza H.B. "O capitalismo, que afirma produzia a
Ordem mediante a reprodução do desejo, na verdade se origina na produção da
escassez, e só pode se reproduzir na insatisfação, na negação e alienação". (9)
E, nesse Clube da Luta, os que se integram, justamente aprendem a lutar e não a
fugir.. aprendem a reconciliar-se com seu próprio passado, a vencer o medo e a
angustiosa realidade materialista; e, no fundo, sempre se manifestando uma luta
existencial.
Julius Evola, em sua obra "O Arco e a Clava", em oposição a certos
movimentos juvenis modernos, descreve uma nova orientação denominada anarquismo
de direita; aqui, nos fala de sujeitos que não perdem seu idealismo depois de
passar dos 30 anos. Jovens com uns entusiasmos e impulsos imensuráveis,
"com uma entrega incondicional, de um desapego a respeito da existência
burguesa e dos interesses puramente materiais e egoístas". (10) Uma geração que
pode ser encontrar-se no presente, que assumem valores como a coragem, a
lealdade, o desprezo à mentira, "a incapacidade de trair, a superioridade
ante qualquer mesquinho egoísmo e ante qualquer interesse baixo" (11); todos
valores que estão por cima do "bem" e do "mal", que não
caem em um plano moral, mas ontológico. É manter-se de pé com princípios imerso
em um clima social desfavorável, agressivo; capaz de lutar por uma causa
perdida com uma força e energia sobrenatural, que termina inspirando o terror
em seus rivais, e entre esses, talvez, a um que consiga despertar frente ao que
acreditava como uma ameaça. Poucos
homens como esses, seriam capazes de deter exércitos em algum penhasco da
antiga Grécia, ou, nos tempos em que vivemos, tomar uma ilha do Atlântico Sul
sem matar nenhum civil ou soldado inimigo.
Mas, ao contrário de H.B., a TAZ, o anarquismo ontológico só pode ser
considerado como uma estratégia para a aceleração dos tempos; mas, dentro dessa
TAZ, deverão recriar-se os princípios de uma Ordem, que deverá reconstruir o
mundo arrasado baseando-se nos princípios da Tradição Primordial.
O que nos separará sempre da postura anarquista frente a
tradicional é a aspiração de edificar um Estado Orgânico, Tradicional, e a
confrontar um igualitarismo com as Hierarquias Espirituais. Como em um tempo
estiveram unidos o anarquismo e o socialismo na estratégia revolucionária, no
presente, o Anarquismo Ontológico segue o mesmo caminho postulado pelo pensador
italiano Julius Evola, de cavalgar o tigre, de controlar o processo de
decadência para estar presentes o dia em que o Tempo se detenha. Talvez, quando
chegar esse dia, ambas posturas estejam unidas na tarefa de construir uma nova
Civilização que será início de uma nova Era.
Em semelhança ao caso argentino, sem um Juan Facundo Quiroga que começou a
desafiar a autoridade iluminista do Partido Unitário, na década de 20 do século
XIX, submergindo o país na anarquia junto com outros caudilhos, não haveria
chegado, uma década mais tarde, um Juan Manuel de Rosas a começar a edificar a
Santa Confederação Argentina; ambos são partes do Ser e Devir; ambos partes da
"Barbárie" em oposição ao anti-espírito alienante da "Civilização".
O anarca e o Soberano Gibelino acabam juntos trazendo a alma do Deserto às
cidades sem luz interior.
Não queremos concluir essa exposição sem voltar à nossa tradição folclórica, à
TAZ que tentou resistir ao avanço da Modernidade. Hoje, aqui reunidos, temos formado
uma TAZ. E quando cada um de nós se for e as luzes desse lugar se apagarem, a
TAZ se dissolverá para logo se criar em outros lugares. O espírito rebelde de
Martín Fierro está em nós vivendo através de todos esses anos.
Concluímos com um fragmento de um poema com o qual nos identificamos, dedicado
ao gaúcho Calandria, que morreu lutando em sua própria lei e sonhando
permanecer pra sempre livre em sua Selva de Montiel:
"En mí se ha reencarnado el alma de un matrero,
como la de Calandria, el
errabundo aquél,
que amaba la espesura, igual que el puma fiero,
y que amplió
las leyendas del bravío Montiel”
Notas:
(1) Hakim Bey. TAZ. Zona Temporalmente Autónoma. http://www.merzmail.net/zona.htm
(2) Hakim Bey. Ob. Cit.
(3) Idem.
(4) Leguizamón, Martiniano. Calandria. Del Viejo Tiempo. Edit. Solar/Hachette – Buenos Aires 1961. P..47.
(5) Sarmiento, Domingo F. Facundo. Civilización y Barbarie. Ed. Calpe – Madrid, 1924. p.106-107.
(6) Sarmiento, Domingo F. Ob. Cit. p. 123.
(7) Nozick, Robert. Anarquia, Estado y Utopía. FCE – Buenos Aires, 1991.
(8) Existe uma diferença
entre o anarquismo (os "ismos") e o anarca, concepção que está mais
próxima da filosofia da Max Stirner. O escritor mexicano José Luiz
Ontiveros nos dá uma explicação da mesma: "O anarca é um autoexilado da
sociedade. O anarca é, também, um solitário, que crê no valor
incondicional e absoluto dos atos. Ao contrário do anarquista, o anarca
deixou de confiar na bondade natural do ser humano e em utopias e
fórmulas filantrópicas que salvam ou redimam a humanidade. Seu ser se
funda no sentido original da palavra grega anarchos, "sem liderança",
mas sua autoridade individualista reconhece princípios como a disciplina
e a moral da guerra, seu combate é travado contra pelo menos dois ou
três inimigos, seu habitat é o bosque, o fogo, a montanha onde o homem
deve abandonar a máscara da sociabilidade, para retornar à experiência
primeira, ao ser que se outorga a si mesmo a vontade". Ontiveros, José
Luis. Apología a la Barbarie. Ediciones Barbarroja – España 1992. p. 38.
(9) Hakim Bey. Ob. Cit.
(10) Evola, Julius. El Arco y la Clava. Editorial Heracles – Buenos Aires 1999. p. 244.
(11) Evola, Julius. Ob. Cit. p. 245.