sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Nacional-Bolchevismo ou Nada

por Aleksandr Dugin


Ou Nós - Ou Nada

É possível dividir o bolchevismo enquanto fenômeno histórico em duas partes. Por um lado, o campo doutrinário das várias visões e teorias socialistas e comunistas pré-marxistas existiram como seus paralelos e continuaram sua existência enquanto motivos intelectuais após o marxismo ter sido forçado à ideologia final. Essa primeira fase pode ser chamada de "o projeto bolchevique". A segunda fase é a encarnação desse projeto na realidade histórica concreta na forma da social-democracia russa, posteriormente do partido comunista, e, na fase final, a história do Estado soviético e do partido governante. A primeira parte é indisputavelmente mais ampla do que a segunda e, como qualquer plano, suplanta a segunda. Mas nós não podemos compreender uma sem a outra. A realização não faz sentido, se nós não conhecemos o plano, e um plano sem realização é mera abstração, e suas possíveis realizações podem ir para melhor ou pior em várias circunstâncias.

O nacional-socialismo e o fascismo apresentam um cenário similar. Por um lado nós temos um dogma teórico, uma filosofia, visões econômicas e históricas, todas unificadas por uma perspectiva comum ("o projeto fascista") - por outro lado, as práticas de partidos históricos (nazi e fascista), bem como o organismo estatal da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler. Porém, há uma diferença básica: o "projeto fascista" da Alemanha e da Itália era muito mais distante de sua encarnação do que o "projeto bolchevique" em relação à realidade soviética.

É bastante sabido, que os partidos e regimes históricos bolcheviques e fascistas se opuseram uns aos outros, e isso resultou em lutas sangrentas, a maior das quais foi a segunda guerra mundial, também conhecida como grande guerra patriótica. Mas essa hostilidade jamais foi absoluta e houve alguns exemplos de fascistas e bolcheviques se unindo mesmo no nível externo, puramente político: o Estado soviético reconheceu de bom grado a ordem fascista na Itália; nacionalistas alemães juntaram forças durante o Caso Schlageter, anunciado por Radek; e finalmente o pacto Molotov-Ribbentrop.

Porém ambos estes projetos possuíam muito mais em comum. Se nós olharmos para o bolchevismo como uma ideologia que inclui o marxismo, mas cruza suas fronteiras (e assim era - afinal, a idéia leninista de "construir o comunismo em um único país" é contrária a Marx), e aplicarmos o mesmo método ao fascismo e ao nazismo (especialmente focando nos ideólogos que estabeleceram as bases para o poder nazista, mas permanecerem em oposição ao regime que eles viam como uma caricatura das próprias perspectivas), nós ficamos obrigados a notar que estes dois projetos tem muito em comum. Na verdade, eles tem tanto em comum que teoricamente seria possível sugerir a existência de uma metaideologia que seria comum a ambos projetos.

Essa única metaideologia que se situa não apenas para além da concretização política do bolchevismo e do fasismo, mas também de suas ideologias políticas, é o Nacional-Bolchevismo em sua essência absoluta. Essa metaideologia jamais foi reconhecida antes por ninguém em sua totalidade. Apenas as mentes mais profundas de ambos campos advinharam intuitivamente que ela existe, tentando expressas essas visões ainda que remotamente.

O Nacional-Bolchevismo não representa as vias pragmáticas dos bolcheviques e dos nacionalistas europeus, condicionadas pela Realpolitik. Nem significa os aspectos idênticos de ambos "projetos". Ele é algo mais profundo que somente poderia aparecer após a queda da encarnação histórica de uma das ideologias - a União Soviética. (A encarnação do projeto fascista caiu há 50 anos).

Esses são os elementos básicos dessa metaideologia:

1 - Consciência escatológica, entendimento claro do fato de que a civilização está finalmente se aproximando de seu fim. Isso nos leva à idéia de restauração escatológica. Há também um esforço para realizar essa Restauração da Idade de Ouro por meios políticos;

2 - A idéia de inadequação das instituições religiosas existentes com objetivos escatológicos - o anti-radicalismo e farisaísmo das religiões tradicionais ocidentais. O espírito de reforma ou "nova espiritualidade" (misticismo, gnosticismo, paganismo);

3 - Ódio pelo mundo moderno, pela civilização ocidental, com suas raízes no espírito do Iluminismo. Identificação do capitalismo imperialista cosmopolita com o mal global extremo. Pathos anti-burguês;

4 - Interesse pelo Oriente e desagrado em relação ao Ocidente. Orientação geopolítica em direção à Eurásia;

5 - Ascetismo espartano (prussiano). Pathos do Trabalho e do Trabalhador. A idéia básica da origem espiritual primária entre o povo, entre os níveis mais baixos que tem estado a salvo da devassidão dos últimos poucos séculos, em comparação com a elite degenerada dos velhos regimes. O princípio de "nova aristocracia", emergindo a partir das massas do povo;

6 - Compreender o povo e a sociedade como um coletivo fraternal orgânico, baseado na solidariedade moral e espiritual. Negação radical do individualismo, do consumismo e da exploração. Esforço de levar todos os povos ao estado da "Idade de Ouro";

7 - Desagrado em relação às tradições culturais, religiosas e econômicas de origem semítica (judaísmo, islã), opondo a elas as tradições indo-europeias, já que a classe social dos "comerciantes" (com sua mentalidade) não existia enquanto tal;

8 - Prontidão para se sacrificar por esse ideal pelo que ele vale. Ódio pela mediocridade e pelo pequeno-burguesismo. Claro espírito revolucionário.

Todos os elementos previamente enumerados podem ser encontrados em qualquer dogma concreto (fascista ou bolchevique). Eles podem variar segundo ideologia ou autor, e podem até mesmo aparecer junto com outras idéias que podem contradizer outros pontos.

Os nacional-bolcheviques históricos (Niekisch, Ustryalov, Tierieard) intuitivamente se aproximaram desse complexo, mas até mesmo eles se desviaram do caminho: Niekisch viu um sentido positivo na tecnologia e no progresso, Ustryalov flertou com o NEP e desconhecia o sentido da Alemanha para a Rússia, Tierieard negou o esoterismo e a religião, permanecendo um materialista pragmático.

O nacional-bolchevismo é de longe o fenômeno mais interessante do século XX. Ele adotou tudo que nos fascina no bolchevismo ou no fascismo. O que quer que tenha levado essas ideologias a um fim, contradiz o espírito dessa doutrina virtual.

O nacional-bolchevismo nos ajuda a compreender em que os regimes anti-liberais de nosso século erraram e por que eles estavam fadados a falhar. Essa análise é leal ao passado, quando chega ao nosso tempo, em que a "nova" direita e a "nova" esquerda são pouco mais do que paródias do que mesmo em seu próprio tempo eram meras paródias do nacional-bolchevismo virtual.

A ideologia nacional-bolchevique está livre de todos os crimes do passado. Os nacional-bolcheviques históricos culparam os nazistas e comunistas de perverter as teorias, e se tornarem assim vítimas do Moloch totalitário. Como a doutrina está assumindo forma somente agora, mesmo este argumento não pode ser o mais decisivo.

O nacional-bolchevismo é aquilo que jamais foi. Ele jamais foi posto em prática, e nem mesmo em teoria. O nacional-bolchevismo está por vir. Por vir, na medida em que essa doutrina será um santuário ideológico e metafísico para aqueles que negam o mundo moderno, o sistema do capitalismo liberal que se tornou a única base da sociedade moderna. A oposição durará para sempre. As velhas ideologias anti-burguesas já demonstraram suas limitações. Erros teóricos mais cedo ou mais tarde resultaram em uma queda histórica. Quem não entende isso, não possui lugar na história.

A única alternativa para o mundo moderno, esse império do anticristo "liberal", é o nacional-bolchevismo.

Ou isso, ou nada. Nenhum compromisso mudará as coisas. Se o sistema sobreviveu ao orgulhoso Reich e à grande União Soviética (destruindo as monarquias tradicionais e impérios antes desses dois), ele pode lidar sem problemas com partidos políticos e extremistas armados.

A questão é que o nacional-bolchevismo possui sua própria linha espiritual, sobre a qual falar agora seria ainda extemporâneo. Essa é uma alternativa secreta que se posicionará contra o "segredo da ilegalidade" durante os tempos finais. Sem essa força, os experimentos bolcheviques e fascistas foram impotentes. Apenas após uma certa distorção dos instrumentos da política essa força abandonou os já citados movimentos, abandonando-os para que o destino lidasse com eles em face do "Mestre do Universo", representando claramente a sociedade liberal. Há sinais que nos dizem que essa força assumiu recentemente uma nova forma (final) que realizará sua natureza.

Eu creio que alguns talvez já advinhem sobre o que eu estou falando.

Fonte: Legio Victrix

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Kerry Bolton - A Política de Lovecraft

por Kerry Bolton



Para muitos de seus admiradores, as coisas mais assustadoras que H.P. Lovecraft escreveu não eram sobre Cthulhu, eram sobre política. Mas, como eu espero demonstrar, a política desse mestre do horror metafísico, irracional, iminente está solidamente fundada na realidade e na razão. Lovecraft, como muitos dos letrados que se voltaram para a política de esquerda ou de direita no início do século XX, estava preocupado com o impacto do capitalismo e da tecnologia na sociedade e na cultura. O reducionismo econômico do capitalismo era simplesmente espelhado no marxismo, ambos sendo emanações do mesmo Zeitgeist materialista moderno.

Começando ao fim do século XIX, um descontentamento penetrante com o materialismo levou a uma busca por uma forma alternativa de sociedade, incluindo fundações alternativas para o socialismo, que ocupou as mentes dos principais socialistas europeus como Georges Sorel. O que emergiu no início do século XX foi variadamente chamado "neo-socialismo" e "planismo", tendo como maiores expoentes Marcel Deat na França e Henri De Man na Bélgica. O neo-socialismo, por sua vez, influenciou a ascensão do fascismo.

Os neo-socialistas temiam primariamente que a abundância material e o ócio prometidos pelo socialismo levariam à decadência e banalidade a não ser que unidas a uma visão hierárquica da cultura e da educação.

Essa era, por exemplo, o foco de A Alma do Homem sob o Socialismo de Oscar Wilde, que visualizava um socialismo individualista que liberava a humanidade da necessidade econômica para buscar a auto-atualização e atividades culturais e espirituais superiores, ainda que essas não consistissem em mais do que contemplar silenciosamente o cosmo.

Tais preocupações não podem ser descartadas como dandismo afeminado. Elas eram partilhadas, por exemplo, pelo famoso político trabalhista neozelandês da era da Crise John A. Lee, um herói de um só braço da Primeira Guerra Mundial que mais do que qualquer outro indivíduo tentou pressionar o governo trabalhista de 1935 a manter suas promessas eleitorais em relação aos bancos e ao crédito público. Nas palavras de Lee:

"Joe Savage...vê o socialismo como pilhas de bens razoavelmente bem distribuídos e trabalho equitativamente dividido. Eu tenho certeza que ele nunca o vê como a oportunidade de jogar futebol, se bronzear na praia, dançar foxtrot, deixar sob a sombra de árvores, desfrutar da intoxicação do verso, o perfume de flores, as alegrias de um livro, a emoção da música".

Lee visualizava uma forma de socialismo que não estava primariamente dirigida a "pilhas de bens e trabalho equitativamente distribuídos" como um fim em si mesmo, mas como meio de alcançar níveis superiores de ser.

Essas preocupações neo-socialistas também eram partilhadas pelos fascistas e Nacional-Socialistas. Combatendo os efeitos enervadores e niveladores da riqueza e do ócio, e edificando os caráteres e gostos das massas eram os objetivos doDopolavoro na Itália Fascista e do Kraft Durch Freude na Alemanha Nacional-Socialista, independentemente do quanto isso possa ser inquietante para os socialistas de esquerda.

Enquanto parece improvável que Lovecraft tivesse consciência desse tumulto ideológico no socialismo europeu, ele chegou a conclusões similares em algumas áreas centrais.

Lovecraft, como outros escritores que rejeitaram o marxismo, considerava tanto a democracia como o comunismo "falaciosos para a civilização ocidental". Ao invés, Lovecraft favorecia:

"...um tipo de fascismo que possa, enquanto ajuda as massas perigosas às custas dos desnecessariamente ricos, não obstante preservar o essencial da civilização tradicional e deixar o poder político nas mãos de uma classe governante pequena e cultivada (mas não excessivamente rica) majoritariamente hereditária, porém sujeita a uma ampliação gradual conforme outros indivíduos ascendam a seu nível cultural"


Lovecraft temia que o socialismo, como o capitalismo, pavimentaria o caminho para a proletarização universal e consequente nivelamento da cultura. Assim ele propunha ao invés o pleo emprego e o encurtamento do dia de trabalho pela mecanização sob a orientação cultural de um regime fascista-socialista aristocrático.

Isso novamente era provavelmente um intuição perceptiva a que Lovecraft chegou de forma independente, mas era de modo geral parte do novo pensamento econômico à época. Na Inglaterra, a revista socialista fabiana, The New Age, editada pelo socialista de guilda A. R. Orage, se tornou um fórum para discutir a teoria do "Crédito Social" do major C. H. Douglas, que era proposta como uma alternativa ao sistema financeiro de dívida, com a emissão de um "crédito social" para todos os cidadãos através de um "Dividendo Nacional" permitindo que o valor total da produção seja consumido. Eles também objetivavam promover a mecanização para reduzir as horas de trabalho e aumentar o tempo de ócio, que eles pensavam poder conduzir a um florescimento da cultura. (Essas idéias tem relevância renovada na medida em que o dia de trabalho de oito horas, a dura conquista dos primórdios do movimento trabalhista, está perdendo terreno).

Tanto Ezra Pound como o poeta neozelandês Rex Fairburn eram defensores do Crédito Social porque eles julgavam ser este o melhor sistema econômico para as artes e a cultura.

Lovecraft estava preocupado com a eliminação das causas da revolução social, e ele defendia a limitação da vasta acumulação de riqueza, ao mesmo tempo reconhecendo a necessidade de manter disparidades de renda baseadas no mérito. Sua preocupação era a eliminação dos "oligarcas comerciais", o que em termos práticos era o propósito do Crédito Social e dos neo-socialistas.

Ao mesmo tempo que considerava como o objetivo primário de uma nação o desenvolvimento de altos níveis estéticos e intelectuais, Lovecraft reconhecia que tal sociedade deve se basear na organização social tradicional de "ordem, coragem e resistência", sua definição de civilização sendo o de um organismo social devotado a um "objetivo qualitativo superior" mantido pelo ethos supramencionado.

Lovecraft pensava que a ordem social hierárquica mais adequada para as praticidades da nova era da máquina era uma "fascista". O "estímulo demanda-oferta" substituiria o estímulo de lucro em uma economia dirigida pelo Estado que reduziria as horas de trabalho e aumentaria as horas de ócio. O cidadão poderia então ser elevado culturalmente e intelectualmente tão longe quanto suas habilidades inatas permitissem, "de modo que esse ócio será o de uma pessoa civilizada ao invés do de um tolo frequentador de cinemas, salões de dança e mesas de sinuca".

Lovecraft não via sabedoria no sufrágio universal. Ele defendia um tipo de neo-aristocracia ou meritocracia, com direito a voto e ocupação de cargos públicos "extremamente restrito". Uma civilização tecnológica especializada havia tornado o sufrágio universal "uma zombaria e uma troça". Ele escreveu que, "as pessoas não possuem geralmente a perspicácia para dirigir uma civilização tecnológica efetivamente". Esse princípio antidemocrático Lovecraft mantinha como verdadeiro independentemente de posição social ou econômica, fosse como trabalhador braçal ou como acadêmico.

O voto desinformado sobre o qual a democracia se apoia, Lovecraft escreveu, "é motivo de gargalhadas cósmicas tumultuosas". A participação universal significava que o desqualificado, geralmente representando algum "interesse oculto", assumiria o cargo com base em ter "a língua mais escorregadia" e "os slogans mais chamativos".

Sua referência a "interesses ocultos" só pode se referir a sua compreensão da natureza oligárquica da democracia. Isso teria que ser substituído por "um governo fascista racional", onde o cargo demandaria um teste de conhecimento de economia, história, sociologia e administração, ainda que todos - com a exceção de estrangeiros não-assimiláveis - teriam a oportunidade de se qualificarem.

Um ano após Mussolini tomar o poder em 1922 Lovecraft escreveu que, "a democracia é um falso ídolo - um mero slogan e uma ilusão de classes inferiores, visionários e civilizações agonizantes". Ele viu na Itália Fascista "o tipo de controle social e político autoritário que é o único capaz de produzir coisas que tornam a vida digna de ser vivida".

É também por isso que Ezra Pound admirava a Itália fascista, escrevendo "Mussolini disse a seu povo que a poesia é uma necessidade para o Estado". E: "Eu não acredito que qualquer estimativa de Mussolini será válida a não ser que parta de sua paixão pela construção. Trate-o como artifex e todos os detalhes se encaixam. Tome-o como qualquer coisa além de um artista e você se perderá nas contradições".

Tais figuras como Pound, Marinetti e Lovecraft viam o fascismo como um movimento que poderia com sucesso subordinar a civilização moderna tecnológica à alta arte e cultura, liberando as massas de uma cultura popular commoditizada crua e brutalizante.

Lovecraft pensava que o cosmos era indiferente à humanidade e conclui que o único sentido da existência humana era atingir níveis cada vez mais altos de desenvolvimento mental e estético. O que Sir Oswald Mosley chamava atualização aFormas Superiores em seu pensamento no pós-guerra, e o que Nietzsche chamava de objetivo do Homem Superior e doSuper-Homem, não poderia ser alcançado através dos "baixos padrões culturais de uma maioria subdesenvolvidas. Tal civilização de mero trabalhar, comer, beber, procriar e vagamente vagabundear ou brincar não é digna de ser mantida". É uma forma de morte que se arrasta e é particularmente dolorosa para a elite cultural.

Lovecraft era bastante influenciado por Nietzsche e Oswald Spengler. Ele reconhecia a natureza cíclica orgânica de nascimento, juventude, maturidade, senilidade e morte culturais como a base da história da ascensão e queda de civilizações. Assim a crise trazida à civilização ocidental pela era das máquinas não era única. Lovecraft cita O Declínio do Ocidente de Spengler como suporte para sua visão de que a civilização havia alcançado o ciclo de "senilidade".

Lovecraft via o declínio cultural como um lento processo que abarca 500 a 1000 anos. Ele buscava um sistema que poderia superar as leis cíclicas de decadência, o que era também a motivação do fascismo. Lovecraft acreditava ser possível restabelecer um novo "equilíbrio" ao longo do 50 a 100 anos, afirmando: "Não há necessidade de se preocupar com a civilização desde que a linguagem e a tradição artística geral sobrevivam". A tradição cultural deve ser mantida acima e além das mudanças econômicas.

Em 1915, Lovecraft estabeleceu sua própria revista política chamada O Conservador, que foi lançada por 13 edições até 1923. O foco da revista era defender altos padrões culturais, particularmente no campo das Letras, mas também se opunha ao pacifismo, ao anarquismo, e ao socialismo e apoiava um "militarismo moderado e sadio" e o "pan-saxonismo", significando que "a dominação do inglês e raças aparentadas sobre as divisões inferiores da humanidade".

Como os neo-socialistas na Europa, Lovecraft se opunha à concepção materialista da história como sendo igualmente burguesa e marxista. Ele via o comunismo como "destruindo o gosto pela vida" em prol de uma teoria. Rejeitando o determinismo econômico como o motivo primário da história, ele via "aristocratas naturais" emergindo de todos os setores de uma população independentemente de status econômico. O objetivo de uma sociedade era substituir "a excelência pessoal por aquela de uma posição econômica" que é, apesar da oposição declarada de Lovecraft ao "socialismo", não obstante essencialmente o mesmo que o "socialismo ético" proposto por Henri De Man, Marcel Deat, et al. Lovecraft via o fascismo como a tentativa de alcançar essa forma de aristocracia no contexto da sociedade industrial e tecnológica moderna.

Lovecraft via a busca da "igualdade" como uma razão destrutiva para uma "revolta atávica" contra a civilização por aqueles que se sentem desconfortáveis com cultura. O mesmo motivo era a raiz do bolchevismo, da Revolução Francesa, o culto de "volta à natureza" de Rousseau, e os racionalistas do século XVIII. Lovecraft via que a mesma revolta estava sendo assumida por "raças atrasadas" sob a liderança dos bolcheviques.

Essas visões são claramente nietzscheanas, mas elas ainda mais especificamente se assemelham as de A Revolta Contra a Civilização: A Ameaça do Sub-Humano, pelo então popular autor Lothrop Stoddard, cuja obra teria certamente atraído Lovecraft, com sua preocupação pela manutenção e renascimento da civilização e rejeição de credos niveladores.

Ainda que Lovecraft rejeitasse o igualitarismo, ele não defendia uma tirana que reprimisse as massas em benefício dos poucos. Ao invés, ele via o governo de uma elite como meio necessário para alcançar os objetivos superiores de atualização cultural. Lovecraft desejava ver a elevação do maior número possível. Lovecraft também rejeitava divisões de classe como "cruéis", seja emanando do proletariado ou da aristocracia. "Classes são algo de que devemos nos livrar ou minimizar - e não algo a ser oficialmente reconhecido". Lovecraft propunha substituir a luta de classes por um estado integral que refletisse a "corrente cultural geral". Entre o indivíduo e o Estado haveria uma lealdade de mão dupla.

Lovecraft considerava o pacifismo como uma "evasão e ar quente idealista". Ele declarou o internacionalismo "uma ilusão e mito". Ele via a Liga das Nações como uma "ópera cômica". As guerras são uma constante na história e para elas devem se preparar pela conscrição universal. Historicamente, a guerra havia fortalecido a "fibra nacional", mas a guerra mecanizada havia negado o processo; na verdade a destruição tecnológica em massa da Primeira Guerra Mundial era amplamente reconhecida como disgênica. Não obstante, o europeu, e especificamente o anglo-saxão, deve manter sua supremacia pelo poder de fogo, pois "a bala de um adversário é mais doce que o chicote de um mestre". Porém, como se deve esperar de um antimaterialista, Lovecraft repudiava a causa moderna típica da guerra, aquela de lutar por supremacia mercantil, "a defesa de sua própria terra e raça sendo o objetivo adequado do armamento".

Lovecraft via a representação judaica nas artes como responsável pelo que Francis Parker Yockey chamaria de "distorção cultural". A cidade de Nova Iorque havia sido "completamente semitizada" e perdida para o "tecido nacional". A influência semítica na literatura, teatro, finanças e propaganda criaram uma cultural e ideologia artificiais "radicalmente hostis à atitude viril americana". Como Yockey, Lovecraft via a Questão Judaica como uma questão de uma "tradição cultural antagonista" mais do que como uma diferença de raça. Assim os judeus poderiam teoricamente ser assimilados a uma tradição cultural americana. O problema do negro, porém, era um de biologia e deve ser reconhecido pela manutenção de uma "linha de cor absoluta".

Esse breve esboço é suficiente, eu penso, para demonstrar que Lovecraft pertence a uma ilustre lista de gênios criativos do século XX - incluindo W. B. Yeats, Ezra Pound, D. H. Lawrence, Knut Hamsun, Henry Williamson, Wyndham Lewis e Yukio Mishima - cuja rejeição do materialismo, igualitarismo e decadência cultural os fez buscar por uma alternativa hierárquica vital tanto ao capitalismo como ao comunismo, uma busca que os levou a considerar e abraçar idéias protofascistas, fascistas ou nacional-socialistas.

Fonte: Legio Victrix

sábado, 15 de novembro de 2014

Julius Evola e Hakim Bey: Em torno do Anarquismo Ontológico

Por Juan Manuel Garayalde.



I – Anarquismo Mítico e Filosófico

Como todo pensamento político, o anarquismo tem tido diferentes pontos de vista. Uma significativa quantidade de intelectuais situam o nascimento do anarquismo no século XIX, que podemos chamar de Metamorfose de Ovídio, uma menção a um sistema político de características similares que existira no início de uma Idade de Ouro, onde não havia leis, juízes, nem nada que se pareça para legislar aos cidadãos, posto que entre eles havia uma visão similar de mundo. Também não podemos esquecer de comunidades anarquistas como a dos seguidores do Patriarca Gnóstico Carpócrates de Alexandria, que fundou comunidades cristãs no norte da África e na Espanha no século II. Diferente do anarquismo filosófico do século XIX, que situa o anarquismo no final da história humana, como um processo evolutivo, tal como foi formulado de maneira similar o paraíso comunista de Karl Marx.

Dentro desta corrente do século XIX, se destacaram autores como William Godwin, Proudhon, Max Stirner, Bakunin, etc.., Stirner, o mais importante expoente do anarquismo individualista, foi contra não só o Estado, mas também contra a Sociedade; foi mais longe do que qualquer pensador anarquista convertendo o homem no Absoluto, no nada criador, em um ser belicoso por natureza que luta pela propriedade de si mesmo, a "propriedade do único", rejeitando o Estado, a burguesia, as instituições sociais e educativas, as famílias e as leis. Destruir as ilusões para descobrir a si mesmo e ser o dono de si mesmo.

Sua principal obra, "O único e sua propriedade", foi recebida com hostilidade por Karl Marx, que a viu como ameaça a todo seu materialismo dialético, ao que se dedicou com esmero a refutar suas ideias. Assim, o anarquismo filosófico começa a ver-se como ameaça ao marxismo.

Posteriormente, será Bakunin quem desafiará o crescimento do comunismo. Este pensador anarquista fez a diferença com os outros, posto que o dito movimento conseguiu uma certa presença na luta social graças a ele. É impensável o sindicalismo anarquista sem Bakunin (recordemos a FORJA na história Argentina, e a famosa "Semana Trágica" de 1919). Europa quiçá nunca teria presenciado um movimento político anarquista organizado, se não fosse pelo trabalho ativo de Bakunin.

II – Anarquismo, Liberalismo e Socialismo

O surgimento do anarquismo filosófico está ligado à crise social pós-medieval. A burguesia começa a estabelecer relações com as velhas aristocracias, enquanto demoliam os grêmios e associações que protegiam os pequenos produtores. Com o crescimento do comércio e as manufaturas, os antigos grêmios medievais eram um grande obstáculo a esse novo desenvolvimento. Os pequenos artesãos e produtores agrícolas começaram a se encontrar desamparados frente o crescimento da competência, ao passo que crescia os direitos monopolistas nas mãos de grandes empresas industriais, agrícolas e comerciais.

Surgiram na época de transição duas correntes de protesto: o Liberalismo Radical, que pretendia reformas parlamentárias para conter o poder do Estado, e o anarquismo. Os liberais (Locke) consideravam a propriedade como um direito natural, e atribuíam a responsabilidade ao Estado de proteger a mesma de ataques internos e externos, permitindo a livre troca de mercadorias. Os anarquistas, no entanto, diziam que o Estado protege a propriedade dos ricos, e que as leis favorecem a concentração da propriedade. Para os anarquistas, se devia criar uma sociedade igualitária de produtores pequenos e economicamente autônomos, livres de privilégios ou distinções classistas, onde o Estado seria desnecessário.

O anarquismo teve sua primeira grande derrota quando Marx assume a Primeira Internacional, depois de debates acalorados com Bakunin. Essa hegemonia se manteve até 1991, com a desintegração da URSS. Desde então, surgiram novas correntes do pensamento anarquista, mas de todas elas, a que aqui queremos resgatar por sua nova orientação é o anarquismo ontológico, que tem o britânico Peter Lamborn Wilson, mais conhecido como Hakim Bey, como seu principal expoente.

III – O Anarquismo Ontológico de Hakim Bey

Torna-se dificultoso definir o conceito de anarquismo ontológico, uma vez que é uma forma de encarar a realidade, onde não se necessita teorias fechadas em si mesmas, mas ações que tendem a tirar o homem de preconceitos modernos. O anarquismo ontológico é um desafio aberto a toda sociedade atual, onde o "Eu" é posto à prova, para ver se é capaz de questionar certos comportamentos e pensamentos que se manifestam mecanicamente. Sua linguagem principal é o que Hakim Bey chama de "terrorismo poético", uma forma brusca mas profunda de rejeitar as convenções de toda sociedade organizada em torno de ilusões.

Ante a crise espiritual que afeta principalmente o Ocidente, Hakim Bey propõe um nomadismo psíquico, um retorno ao paleolítico, sendo mais realista que simbólico esse último conceito. Como ele diz, "se busca a transmutação da cultura impura em ouro contestatário". Sua frase principal é "O caos nunca morreu", onde, para ele, seria o espaço onde a liberdade se vive plenamente, enquanto vê a Ordem como a apresentação de uma série de estruturas políticas, culturais, educativas e policiais; em si, limites impostos à mente que deve possuir plena liberdade da natureza. Essa ordem atual não faz mais que aprisionar o homem, leis de uma civilização que está parada no tempo, para congelar e matar o Espírito.

Bey nos diz que o Caos é derrotado por jovens deuses, moralistas, por sacerdotes e banqueiros, senhores que querem servos e não homens livres. Seguidor de grupos sufis não muito ortodoxos, apresenta a jihad espiritual, a rebelião contra a civilização moderna.

O modelo social de luta que apresenta Hakim Bey é o da quadrilha, do grupo de saqueadores que tem sua própria lei. Esse é o sentido do paleolítico, o grupo de caçadores e coletores que percorriam pelos bosques e desertos de uma terra antiga sem deuses tiranos.

Alguns poucos anos atrás, estreou um filme no qual um dos realizadores foi influenciado pelos escritos desse autor. O filme se chamava "O Clube da Luta", onde se descreve um homem submisso ao sistema econômico e moral, que se depara a uma ruptura mental que o leva a criar um mundo real onde poderia estar fora do sistema, burlando o mesmo continuamente.

Isso nos leva a estudar a contribuição que consideramos a mais importante da obra de Hakim Bey: o conceito de TAZ, ou seja, a Zona Autônoma Temporária.

IV - Zona Autônoma Temporária (TAZ)

Existe uma coincidência semântica com o pensador tradicionalista italiano, Julius Evola: Ambos autores utilizam o termo "rebelião" como força de reação aos sintomas de declínio espiritual e material do homem.

Para Hakim Bey, o projeto de uma revolução implica um processo de transformações onde se vai de uma situação caótica até uma nova Ordem. O escritor nos diz: "Como é que todo mundo sempre termina por endireitar-se? Por que sempre toda revolução segue uma reação, como uma temporada no inferno?" (1) Dessa maneira, uma Ordem dentro do Kali Yuga implicaria retornar a uma forma de conservadorismo decadente. Implica a frustração inicial de ideais revolucionários, ante as reações naturais dos que querem voltar as coisas ao normal, saindo do Caos.

H.B. utiliza os termos "rebelião", "revolta" e "insurreição", que implicariam "um momento que salta por cima do tempo, que viola a "lei" da história". Neste caso, estamos muito perto do conceito evoliano de "idealismo mágico”.

Completando essas ideias: enquanto a revolução é um processo que vai do caos a uma ordem determinada, a rebelião que apresenta H.B. é temporal, é um ato extra-ordinário, que busca mudar o mundo e não se adaptar a ele, que busca viver a utopia e não se conformar com uma ordem.

Mas, se não há uma ordem determinada a se criar por partes dos anarquistas ontológicos, de onde parte a rebelião e para onde ela retorna uma vez desatada? Aqui H.B nos fala da TAZ, as Zonas Autônomas Temporárias, que é um lugar físico que permite justamente um desenvolvimento da liberdade interior. Devemos esclarecer que a TAZ não é um conceito abstrato, mas real e histórico.. embora sempre quis se manifestar fora da História.

Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos  para poder pertencer a um determinado sistema social.

Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos para poder pertencer a um determinado sistema social. Eles souberam criar um sistema fora do Sistema, ou seja, um anti-sistema, o caos, o lugar onde o anarquismo ontológico poderia encontrar uma causa para seu desenvolvimento. Se falarmos da gente que compunham os barcos piratas, descobrimos que eram de raças distintas: negros, brancos, asiáticos; distintas religiões, diferentes educações e classes sociais das quais foram deserdados; todos estavam em pé de igualdade, mas não uma igualdade coletivista, mas guerreira.

Esta TAZ, essa Zona Autônoma Temporária que foi a Ilha de Tortuga, não durou muitos anos, e essa é justamente a característica da TAZ, sua limitação no tempo, que segundo H.B. na melhor das hipóteses pode durar a vida de uma pessoa, mas não mais que isso, posto que o Sistema irá em sua busca para destruí-la. Vejamos como o autor defina a TAZ:

“O Taz é como uma revolta que não se envolve com o Estado, uma operação guerrilheira que libera uma área – de terra, de tempo, de imaginação – e então se autodissolve para reconstruir-se em qualquer outro lugar ou tempo, antes que o Estado possa esmagá-la.” (2)

É a estratégia da barricada que quando está a ser destruída, é abandonada e levantada em outro lugar. É o âmbito da internet, onde se entra para criticar o sistema através de uma página da web e quando essa cai, volta a aparecer em outro lugar.

Mas, sigamos com os exemplos históricos que H.B. utiliza para descrever o conceito de TAZ. Neste caso, citamos um parágrafo completo, com o objetivo de que se possa apreciar todos os elementos vulgares, artísticos, esotéricos e poéticos do pensador, que parece mesclar a realidade com a fantasia, com a utopia e com o oculto. Esta forma de escrever, que como mencionamos acima, é definido como "terrorismo poético":

“Por isso, dentre os experimentos do período entre-guerras eu me concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é menos conhecida e não foi criada para durar.

Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta, mulherengo, doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e mal- educado, emergiu da Primeira Guerra Mundial como herói e com um pequeno exército à sua disposição e comando: os arditi. Ávido por aventura, ele decidiu capturar a cidade de Fiume, na Iugoslávia, e entregá-la para a Itália. Depois de uma cerimônia necromântica com sua amante num cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e foi bem-sucedido sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.

Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por quanto tempo conseguiria mantê-la. Ele e um de seus amigos anarquistas escreveram a Constituição, que instituía a música como o princípio central do Estado. A Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas dos estaleiros de Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos antigos piratas que em tempos passados viviam nas ilhas da região e saqueavam os navios venezianos e otomanos. Os modernos uscochi foram bem-sucedidos em alguns de seus golpes malucos: vários polpudos navios mercantes italianos de repente deram à República um futuro: dinheiro em seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio se correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados sem pátria, homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira e os ossos cruzados dos piratas - depois roubado pela SS) e excêntricos reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofistas e seguidores do vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não acabava nunca. Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo. Dezoito meses mais tarde, quando o vinho e o dinheiro haviam terminado e a frota italiana finalmente apareceu e arremessou alguns projéteis contra o Palácio Municipal, ninguém tinha energia para resistir.

(...). Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas (ou o único exemplo moderno), e também, talvez, algo muito próximo da primeira TAZ moderna.”
(3)

V – A TAZ na História Argentina

Chegando a este ponto, nos perguntamos: pode se falar um exemplo da TAZ em nossa história argentina? H.B. pode ter citado um exemplo para trazer em seu trabalho? A resposta é afirmativa, e encontramos nada mais e nada menos que em nossa obra-prima da literatura argentina: El Martín Fierro.


Essa obra, cujo protagonista é uma criação do autor, representa o confronto entre a "Civilização" e a "Barbárie", e forçando um pouco os termos, entre a Modernidade e a Tradição. O tempo em que se desenvolve o poema guacheso é durante o período da organização nacional, entendido este como a adaptação de um país de caráter católico, livre e guerreiro, ao sistema constitucional liberal, laico, de dessacralização do poder político em ideologias que sustentaram e reforçaram a Modernidade.

Martín Fierro é o arquétipo da "Barbárie": o homem que não aceita uma "Civilização" alheia a sua cultura, que quer obrigá-lo a adotar uma nova forma de vida, sob o risco de perdê-la se não obedecer. Por tal motivo, Martin Fierro foge para além da fronteira sul, para viver com os índios. Lemos na obra:

“Yo sé que los caciques/amparan a los cristianos,
y que los tratan de “hermanos”
Cuando se van por su gusto
A que andar pasando sustos …
Alcemos el poncho y vamos”.

A Fronteira, os acampamentos, são a TAZ que existiu na Argentina. Ali, os homens que estavam fora da lei, encontraram a liberdade: foram aqueles que desertavam do novo exército constitucional, ladrões de gado, assassinos, escravos, rapaz jovens que fugiam de suas casas optando pela liberdade que existia para além da fronteira. Também existiram exemplos de mulheres que encantadas com os índios, tiveram famílias, e que ao regressar à civilização, não puderam se acostumar e regressaram com os índios. Martín Fierro nos descreve a vida livre:

“Allá no hay que trabajar
Vive uno como un señor
De cuando en cuando un malón
Y si de él sale con vida
Lo pasa echado panza arriba
Mirando dar güelta el sol.”

A verdade é que não havia muita diferença entre o acampamento e o meio rural. A diferença começou a ampliar-se na medida que cresciam as leis e a coerção e se perdia a liberdade que o gaúcho conhecia. A fronteira passa a se tornar não só uma válvula de escapa para tensões sociais, mas também existenciais.

Mas do arquétipo passemos também a um exemplo concreto, a um homem que a literatura retratou várias vezes em novelas, contos e obras de teatro, ao qual se acrescentou muitos relatos acerca do lugar que utilizou para escapar da "civilização". O homem que escolhemos aleatoriamente se chamou Cervando Cardozo, conhecido como Calandria por sua bela voz para o canto. Foi um gaúcho que nasceu em 1839 e faleceu - morto pela polícia- em 1879. Teve uma vida como qualquer um de seu tempo, mas a diferença é que decidiu lutar quanto a institucionalização política do país começou a querer roubar sua liberdade. Ele se incorpora com a última montonera da histórica oficial, a comandada pelo caudilho entrerriano Ricardo López Jordán, ao que a histórica oficial o acusa de ter participado do assassinado do caudilho Justo J. de Urquiza, que até então era o principal responsável pela transformação política do país. Calandria combateu junto a López Jordan, e ao ser derrotado é obrigago a incorporar-se a um exército de fronteira. Calandria não aceita e deserta. Nasce assim sua vida de fora da lei, que a viverá dentro da província de Entre Rios na denominada Selva de Montiel, onde as forças policiais jamais poderiam capturá-lo.



Aqui entramos num novo TAZ: o bosque. Em muitas tradições, os bosques representam lugares proibidos, onde abundam espíritos, criaturas fantásticas e onde se corria perigo de encontrar uma morte horrenda. um dos exemplos mais conhecidos por todos são os bosques de Sherwood onde encontraram refúgio vários "fora da lei" que logo seguiriam o famoso Robin Hood.

Em nossa terra, os bosques representam o lugar onde os gaúchos rebeldes se escondiam, donde os feiticeiros, curandeiros, bruxas e deformes tinham seu covil. É também o local onde os aquelarres se realizavam, que bem expressados estão em nossas canções populares; por exemplo em La Salamanca de Artudo Dávalos, diz o refrão "Y en las noches de luna se puede sentir, / a Mandinga y los diablos cantar”, o Bailarín de los Montes de Peteco Carabajal, en su estribillo también dice: “Soy bailarín de los montes / nacido en la Salamanca".

Aqui faremos um breve aprofundamento desse tema de La Salamanca: originalmente, a lenda parte da Espanha, da região de Salamanca. Ali se encontravam as famosas grutas dos alquimistas, magos, cabalistas, gnósticos e outros, se reuniam em segredo para evitar a perseguição da Inquisição. Como ali se efetuaram todo tipo de ensinamentos de caráter iniciático, permaneceu uma lenda negativa impulsionada pelo clero católico da época, de que ali se invocava o demônio, e é por isso que todo o processo daquele que ingressa na Salamanca até chegar a frente do Diabo é de caráter iniciático. É por isso que se diz, na atualidade, que existem duas entradas para Salamanca com resultados diferentes, uma de ascensão e outra de descida. A Salamanca é para a TAZ argentina um modelo de iniciação, conquistando "a outra porta".

Retomando, a Selva de Montiel (chamada assim pelo aspecto impenetrável da mesma) foi o refúgio de muitos, como Calandria, que resistiram à mudança pelo apego à liberdade e à tradição. Estes rebeldes conservaram em pequena escala parte da figura que representaram em outro momento os Caudilhos, posto que tinham um respeito e compreensão para com o povo e esses acabaram sendo cúmplices silenciosos das aventuras desses forasteiros.

Cito aqui um trecho da peça "Calandria" de Martiniano Leguizamón, estreada em 1896. Nesse fragmento, se fala do gaúcho rebelde frente a tumba de sua mãe:

“¡Triste destino el mío! …. ¡Sin un rancho, sin familia, sin un día de reposo! … ¡Tendré al fin que entregarme vensido a mis perseguidores! … Y ¿pa qué? ¿Por salvar el número uno? … ¿Por el placer de vivir? … ¡No, si la libertad que me ofrecen no had ser más que una carnada! No; no agarro. ¡Qué me van a perdonar las mil diabluras que le he jugao a la polesía! ¡Me he reído tanto de ella y la he burlao tan fiero! … (Riendo) ¡La verdá que esto es como dice el refrán: andar el mundo al revés, el sorro corriendo al perro y el ladrón detrás del jues! … ¡Bah … si el que no nació pa el cielo al ñudo mira pa arriba!” (4)

 Calandria não foi o único desses gaúchos rebeldes. Nosso Atahualpa Tupanqui foi um gaúcho rebelde nos anos 30. Depois da uma falida revolução radical que participou, fugiu para Entre Rios e se escondeu na Selva de Montiel. Foi nessa época que compôs a canção "Sin caballao y en Montiel".

Mas avancemos mais nessa construção da TAZ em nossa terra. Se o gaúcho rebelde é uma representação, em pequena escala, de Caudillo, onde podemos encontrar uma figura de tal magnitude que se encaixe com o modelo de anarquismo ontológico? Podemos encontrar verdadeiras surpresas em nossa história nacional. Uma delas é a do jovem Juvan Facundo Quiroga, o "Tigre de los Llanos", que pelas descrições que fizeram de sua pessoa, nos atrevemos a dizer que foi um dos primeiros líderes anarcas que houve em nossa história nacional.

Sarmiento, que conheceu Quiroga em sua etapa jovem - não a adulta onde se começaria a preocupar-se com a forma de organização a ser alcançada com a Confederação Argentina - em seu "Facundo", entre o ódio e a admiração escreve essas palavras sobre Quiroga:

“Toda la vida publica de Quiroga me parece resumida en estos datos. Veo en ellos el hombre grande, el hombre genio a su pesar, sin saberlo él, el César, el Tamerlán, el Mahoma. Ha nacido así, y no es culpa suya; se abajará en las escalas sociales para mandar, para dominar, para combatir el poder de la ciudad, la partida de la policía. Si le ofrecen una plaza en los ejércitos la desdeñará, porque no tiene paciencia para aguardar los ascensos, porque hay mucha sujeción, muchas trabas puestas a la independencia individual, hay generales que pesan sobre él, hay una casaca que oprime el cuerpo y una táctica que regla los pasos ¡todo es insufrible!. La vida de a caballo, la vida de peligros y emociones fuertes han acerado su espíritu y endurecido su corazón; tiene odio invencible, instintivo, contra las leyes que lo han perseguido, contra los jueces que lo han condenado, contra toda esa sociedad y esa organización de que se ha sustraído desde la infancia y que lo mira con prevención y menosprecio. (…) Facundo es un tipo de barbarie primitiva; no conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras …” (5)

E como todo anarca, Quiroga não era um dos homens que queriam sentar em uma mesa no escritório a governa o que muito havia lhe custado conseguir. Suas batalhas nunca finalizaram. Citamos novamente a Sarmiento:

“Quiroga, en su larga carrera, jamás se ha encargado del gobierno organizado, que abandonaba siempre a otros. Momento grande y espectable para los pueblos es siempre aquel en que una mano vigorosa se apodera de sus destinos. Las instituciones se afirman o ceden su lugar a otras nuevas más fecundas en resultados, o más confortables con las ideas que predominan. (…)
“No así cuando predomina una fuerza extraña a la civilización, cuando Atila se apodera de Roma, o Tamerlán recorre las llanuras asiáticas; los escombros quedan, pero en vano iría después a removerlos la mano de la filosofía para buscar debajo de ellos las plantas vigorosas que nacieran con el abono nutritivo de la sangre humana. Facundo, genio bárbaro, se apodera de su país; las tradiciones de gobierno desaparecen, las formas se degradan, las leyes son un juguete en manos torpes; y en medio de esta destrucción efectuada por las pisadas de los caballos, nada se sustituye, nada se establece”. (6)

Aqui vemos com claridade os conceitos de H.B. de psiquismo nômade e de retorno ao paleolítico.

VI – Anarquismo Ontológico e Tradição

Até aqui, temos traçado um paralelo entre o conceito de TAZ de H.B e nossa história nacional. Nossa tarefa agora é ver aonde o anarquismo ontológico pode nos levar.

Esta postura acreditamos que é positiva para o impulso de um niilismo ativo, que consistirá em construir bases de ação que são a TAZ: sua ação é desconstrutora, de rejeição aos valores e estruturas do pensamento da Modernidade. O anarquismo ontológico tem sabido descobrir na história os forasteiros do sistema, e esse tema é uma eterna preocupação da filosofia política contemporânea. Por exemplo, um dos pensadores mais importantes do neoliberalismo, Robert Nozick, (7) recentemente falecido, nos fala de um estado de natureza onde passo a passo se vai construindo um Estado Liberal ideal para a sociedade atual. Nos fala de uma Associação de Proteção Dominante, onde uns trabalham e outros tomam o papel de defender a comunidade dos agressores externos. De lá, se passa para o Estado ultramínimo, que tem como objetivo justamente incorporar os forasteiros.. os foras da lei. Supostamente, para Nozick, os forasteiros se integrariam à sociedade ao lhes ser oferecida proteção gratuita para que possam viver em paz, o que chamou princípio de compensação. Essa tentativa teórica fracassou, sobrando-nos exemplos reais para comprovar historicamente. O anarca não necessita que nada o projeta. E é livre para viver e morrer em sua própria lei. (8)

O Anarquismo Ontológico tem tido uma importante repercussão entre os jovens, e essa ideia do TAZ foi levada ao cinema. O filme "O Clube da Luta", com Edward Norton e Brad Pitt como atores principais, nos apresenta uma atmosfera de uma geração de jovens sem ideais, com futuro incerto e, sobretudo, com a revelação absoluta de sua própria solidão no mundo. Ali, como em Doctor Jekill e Mister Hyde, há um homem que não se atreve a se libertar de suas próprias correntes, a viver o mundo sem tratar de controlá-lo.

Um filme como Clube da Luta nos mostra que estamos sós, que não há ninguém lá fora com os braços abertos nos esperando. Um dos personagens desse filme, Tyler Durden, em seu discurso onde inaugura sua TAZ, o Clube da Luta, vivendo em um edifício abandonado em ruínas e rodeado de jovens rebeldes, diz: "Eu vejo no Clube da Luta os homens mais inteligentes e fortes, vejo tanto potencial e vejo que isso se desperdiça. Meu Deus, uma geração vendendo gasolina, servindo mesas, escravos do colarinho branco e todos esses anúncios que promovem o desejar de carros e roupas com marcas de um tipo que nos dita como devemos nos ver. Fazemos trabalhos odiosos para comprar o desnecessário, filhos no meio da História sem propósito nem lugar..

Como nos disse com certeza H.B. "O capitalismo, que afirma produzia a Ordem mediante a reprodução do desejo, na verdade se origina na produção da escassez, e só pode se reproduzir na insatisfação, na negação e alienação". (9)

E, nesse Clube da Luta, os que se integram, justamente aprendem a lutar e não a fugir.. aprendem a reconciliar-se com seu próprio passado, a vencer o medo e a angustiosa realidade materialista; e, no fundo, sempre se manifestando uma luta existencial.

Julius Evola, em sua obra "O Arco e a Clava", em oposição a certos movimentos juvenis modernos, descreve uma nova orientação denominada anarquismo de direita; aqui, nos fala de sujeitos que não perdem seu idealismo depois de passar dos 30 anos. Jovens com uns entusiasmos e impulsos imensuráveis, "com uma entrega incondicional, de um desapego a respeito da existência burguesa e dos interesses puramente materiais e egoístas". (10) Uma geração que pode ser encontrar-se no presente, que assumem valores como a coragem, a lealdade, o desprezo à mentira, "a incapacidade de trair, a superioridade ante qualquer mesquinho egoísmo e ante qualquer interesse baixo" (11); todos valores que estão por cima do "bem" e do "mal", que não caem em um plano moral, mas ontológico. É manter-se de pé com princípios imerso em um clima social desfavorável, agressivo; capaz de lutar por uma causa perdida com uma força e energia sobrenatural, que termina inspirando o terror em seus rivais, e entre esses, talvez, a um que consiga despertar frente ao que acreditava como uma ameaça.  Poucos homens como esses, seriam capazes de deter exércitos em algum penhasco da antiga Grécia, ou, nos tempos em que vivemos, tomar uma ilha do Atlântico Sul sem matar nenhum civil ou soldado inimigo.

Mas, ao contrário de H.B., a TAZ, o anarquismo ontológico só pode ser considerado como uma estratégia para a aceleração dos tempos; mas, dentro dessa TAZ, deverão recriar-se os princípios de uma Ordem, que deverá reconstruir o mundo arrasado baseando-se nos princípios da Tradição Primordial.

O que nos separará sempre da postura anarquista frente a tradicional é a aspiração de edificar um Estado Orgânico, Tradicional, e a confrontar um igualitarismo com as Hierarquias Espirituais. Como em um tempo estiveram unidos o anarquismo e o socialismo na estratégia revolucionária, no presente, o Anarquismo Ontológico segue o mesmo caminho postulado pelo pensador italiano Julius Evola, de cavalgar o tigre, de controlar o processo de decadência para estar presentes o dia em que o Tempo se detenha. Talvez, quando chegar esse dia, ambas posturas estejam unidas na tarefa de construir uma nova Civilização que será início de uma nova Era.

Em semelhança ao caso argentino, sem um Juan Facundo Quiroga que começou a desafiar a autoridade iluminista do Partido Unitário, na década de 20 do século XIX, submergindo o país na anarquia junto com outros caudilhos, não haveria chegado, uma década mais tarde, um Juan Manuel de Rosas a começar a edificar a Santa Confederação Argentina; ambos são partes do Ser e Devir; ambos partes da "Barbárie" em oposição ao anti-espírito alienante da "Civilização". O anarca e o Soberano Gibelino acabam juntos trazendo a alma do Deserto às cidades sem luz interior.

Não queremos concluir essa exposição sem voltar à nossa tradição folclórica, à TAZ que tentou resistir ao avanço da Modernidade. Hoje, aqui reunidos, temos formado uma TAZ. E quando cada um de nós se for e as luzes desse lugar se apagarem, a TAZ se dissolverá para logo se criar em outros lugares. O espírito rebelde de Martín Fierro está em nós vivendo através de todos esses anos.

Concluímos com um fragmento de um poema com o qual nos identificamos, dedicado ao gaúcho Calandria, que morreu lutando em sua própria lei e sonhando permanecer pra sempre livre em sua Selva de Montiel:

"En mí se ha reencarnado el alma de un matrero,
como la de Calandria, el errabundo aquél,
que amaba la espesura, igual que el puma fiero,
y que amplió las leyendas del bravío Montiel”

Notas:


(1) Hakim Bey. TAZ. Zona Temporalmente Autónoma. http://www.merzmail.net/zona.htm

(2) Hakim Bey. Ob. Cit.

(3) Idem.

(4) Leguizamón, Martiniano. Calandria. Del Viejo Tiempo. Edit. Solar/Hachette – Buenos Aires 1961. P..47.

(5) Sarmiento, Domingo F. Facundo. Civilización y Barbarie. Ed. Calpe – Madrid, 1924. p.106-107.

(6) Sarmiento, Domingo F. Ob. Cit. p. 123.

(7) Nozick, Robert. Anarquia, Estado y Utopía. FCE – Buenos Aires, 1991.

(8) Existe uma diferença entre o anarquismo (os "ismos") e o anarca, concepção que está mais próxima da filosofia da Max Stirner. O escritor mexicano José Luiz Ontiveros nos dá uma explicação da mesma: "O anarca é um autoexilado da sociedade. O anarca é, também, um solitário, que crê no valor incondicional e absoluto dos atos. Ao contrário do anarquista, o anarca deixou de confiar na bondade natural do ser humano e em utopias e fórmulas filantrópicas que salvam ou redimam a humanidade. Seu ser se funda no sentido original da palavra grega anarchos, "sem liderança", mas sua autoridade individualista reconhece princípios como a disciplina e a moral da guerra, seu combate é travado contra pelo menos dois ou três inimigos, seu habitat é o bosque, o fogo, a montanha onde o homem deve abandonar a máscara da sociabilidade, para retornar à experiência primeira, ao ser que se outorga a si mesmo a vontade".  Ontiveros, José Luis. Apología a la Barbarie. Ediciones Barbarroja – España 1992. p. 38.

(9) Hakim Bey. Ob. Cit.

(10) Evola, Julius. El Arco y la Clava. Editorial Heracles – Buenos Aires 1999. p. 244.

(11) Evola, Julius. Ob. Cit. p. 245.