quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Kerry Bolton - A Política de Lovecraft

por Kerry Bolton



Para muitos de seus admiradores, as coisas mais assustadoras que H.P. Lovecraft escreveu não eram sobre Cthulhu, eram sobre política. Mas, como eu espero demonstrar, a política desse mestre do horror metafísico, irracional, iminente está solidamente fundada na realidade e na razão. Lovecraft, como muitos dos letrados que se voltaram para a política de esquerda ou de direita no início do século XX, estava preocupado com o impacto do capitalismo e da tecnologia na sociedade e na cultura. O reducionismo econômico do capitalismo era simplesmente espelhado no marxismo, ambos sendo emanações do mesmo Zeitgeist materialista moderno.

Começando ao fim do século XIX, um descontentamento penetrante com o materialismo levou a uma busca por uma forma alternativa de sociedade, incluindo fundações alternativas para o socialismo, que ocupou as mentes dos principais socialistas europeus como Georges Sorel. O que emergiu no início do século XX foi variadamente chamado "neo-socialismo" e "planismo", tendo como maiores expoentes Marcel Deat na França e Henri De Man na Bélgica. O neo-socialismo, por sua vez, influenciou a ascensão do fascismo.

Os neo-socialistas temiam primariamente que a abundância material e o ócio prometidos pelo socialismo levariam à decadência e banalidade a não ser que unidas a uma visão hierárquica da cultura e da educação.

Essa era, por exemplo, o foco de A Alma do Homem sob o Socialismo de Oscar Wilde, que visualizava um socialismo individualista que liberava a humanidade da necessidade econômica para buscar a auto-atualização e atividades culturais e espirituais superiores, ainda que essas não consistissem em mais do que contemplar silenciosamente o cosmo.

Tais preocupações não podem ser descartadas como dandismo afeminado. Elas eram partilhadas, por exemplo, pelo famoso político trabalhista neozelandês da era da Crise John A. Lee, um herói de um só braço da Primeira Guerra Mundial que mais do que qualquer outro indivíduo tentou pressionar o governo trabalhista de 1935 a manter suas promessas eleitorais em relação aos bancos e ao crédito público. Nas palavras de Lee:

"Joe Savage...vê o socialismo como pilhas de bens razoavelmente bem distribuídos e trabalho equitativamente dividido. Eu tenho certeza que ele nunca o vê como a oportunidade de jogar futebol, se bronzear na praia, dançar foxtrot, deixar sob a sombra de árvores, desfrutar da intoxicação do verso, o perfume de flores, as alegrias de um livro, a emoção da música".

Lee visualizava uma forma de socialismo que não estava primariamente dirigida a "pilhas de bens e trabalho equitativamente distribuídos" como um fim em si mesmo, mas como meio de alcançar níveis superiores de ser.

Essas preocupações neo-socialistas também eram partilhadas pelos fascistas e Nacional-Socialistas. Combatendo os efeitos enervadores e niveladores da riqueza e do ócio, e edificando os caráteres e gostos das massas eram os objetivos doDopolavoro na Itália Fascista e do Kraft Durch Freude na Alemanha Nacional-Socialista, independentemente do quanto isso possa ser inquietante para os socialistas de esquerda.

Enquanto parece improvável que Lovecraft tivesse consciência desse tumulto ideológico no socialismo europeu, ele chegou a conclusões similares em algumas áreas centrais.

Lovecraft, como outros escritores que rejeitaram o marxismo, considerava tanto a democracia como o comunismo "falaciosos para a civilização ocidental". Ao invés, Lovecraft favorecia:

"...um tipo de fascismo que possa, enquanto ajuda as massas perigosas às custas dos desnecessariamente ricos, não obstante preservar o essencial da civilização tradicional e deixar o poder político nas mãos de uma classe governante pequena e cultivada (mas não excessivamente rica) majoritariamente hereditária, porém sujeita a uma ampliação gradual conforme outros indivíduos ascendam a seu nível cultural"


Lovecraft temia que o socialismo, como o capitalismo, pavimentaria o caminho para a proletarização universal e consequente nivelamento da cultura. Assim ele propunha ao invés o pleo emprego e o encurtamento do dia de trabalho pela mecanização sob a orientação cultural de um regime fascista-socialista aristocrático.

Isso novamente era provavelmente um intuição perceptiva a que Lovecraft chegou de forma independente, mas era de modo geral parte do novo pensamento econômico à época. Na Inglaterra, a revista socialista fabiana, The New Age, editada pelo socialista de guilda A. R. Orage, se tornou um fórum para discutir a teoria do "Crédito Social" do major C. H. Douglas, que era proposta como uma alternativa ao sistema financeiro de dívida, com a emissão de um "crédito social" para todos os cidadãos através de um "Dividendo Nacional" permitindo que o valor total da produção seja consumido. Eles também objetivavam promover a mecanização para reduzir as horas de trabalho e aumentar o tempo de ócio, que eles pensavam poder conduzir a um florescimento da cultura. (Essas idéias tem relevância renovada na medida em que o dia de trabalho de oito horas, a dura conquista dos primórdios do movimento trabalhista, está perdendo terreno).

Tanto Ezra Pound como o poeta neozelandês Rex Fairburn eram defensores do Crédito Social porque eles julgavam ser este o melhor sistema econômico para as artes e a cultura.

Lovecraft estava preocupado com a eliminação das causas da revolução social, e ele defendia a limitação da vasta acumulação de riqueza, ao mesmo tempo reconhecendo a necessidade de manter disparidades de renda baseadas no mérito. Sua preocupação era a eliminação dos "oligarcas comerciais", o que em termos práticos era o propósito do Crédito Social e dos neo-socialistas.

Ao mesmo tempo que considerava como o objetivo primário de uma nação o desenvolvimento de altos níveis estéticos e intelectuais, Lovecraft reconhecia que tal sociedade deve se basear na organização social tradicional de "ordem, coragem e resistência", sua definição de civilização sendo o de um organismo social devotado a um "objetivo qualitativo superior" mantido pelo ethos supramencionado.

Lovecraft pensava que a ordem social hierárquica mais adequada para as praticidades da nova era da máquina era uma "fascista". O "estímulo demanda-oferta" substituiria o estímulo de lucro em uma economia dirigida pelo Estado que reduziria as horas de trabalho e aumentaria as horas de ócio. O cidadão poderia então ser elevado culturalmente e intelectualmente tão longe quanto suas habilidades inatas permitissem, "de modo que esse ócio será o de uma pessoa civilizada ao invés do de um tolo frequentador de cinemas, salões de dança e mesas de sinuca".

Lovecraft não via sabedoria no sufrágio universal. Ele defendia um tipo de neo-aristocracia ou meritocracia, com direito a voto e ocupação de cargos públicos "extremamente restrito". Uma civilização tecnológica especializada havia tornado o sufrágio universal "uma zombaria e uma troça". Ele escreveu que, "as pessoas não possuem geralmente a perspicácia para dirigir uma civilização tecnológica efetivamente". Esse princípio antidemocrático Lovecraft mantinha como verdadeiro independentemente de posição social ou econômica, fosse como trabalhador braçal ou como acadêmico.

O voto desinformado sobre o qual a democracia se apoia, Lovecraft escreveu, "é motivo de gargalhadas cósmicas tumultuosas". A participação universal significava que o desqualificado, geralmente representando algum "interesse oculto", assumiria o cargo com base em ter "a língua mais escorregadia" e "os slogans mais chamativos".

Sua referência a "interesses ocultos" só pode se referir a sua compreensão da natureza oligárquica da democracia. Isso teria que ser substituído por "um governo fascista racional", onde o cargo demandaria um teste de conhecimento de economia, história, sociologia e administração, ainda que todos - com a exceção de estrangeiros não-assimiláveis - teriam a oportunidade de se qualificarem.

Um ano após Mussolini tomar o poder em 1922 Lovecraft escreveu que, "a democracia é um falso ídolo - um mero slogan e uma ilusão de classes inferiores, visionários e civilizações agonizantes". Ele viu na Itália Fascista "o tipo de controle social e político autoritário que é o único capaz de produzir coisas que tornam a vida digna de ser vivida".

É também por isso que Ezra Pound admirava a Itália fascista, escrevendo "Mussolini disse a seu povo que a poesia é uma necessidade para o Estado". E: "Eu não acredito que qualquer estimativa de Mussolini será válida a não ser que parta de sua paixão pela construção. Trate-o como artifex e todos os detalhes se encaixam. Tome-o como qualquer coisa além de um artista e você se perderá nas contradições".

Tais figuras como Pound, Marinetti e Lovecraft viam o fascismo como um movimento que poderia com sucesso subordinar a civilização moderna tecnológica à alta arte e cultura, liberando as massas de uma cultura popular commoditizada crua e brutalizante.

Lovecraft pensava que o cosmos era indiferente à humanidade e conclui que o único sentido da existência humana era atingir níveis cada vez mais altos de desenvolvimento mental e estético. O que Sir Oswald Mosley chamava atualização aFormas Superiores em seu pensamento no pós-guerra, e o que Nietzsche chamava de objetivo do Homem Superior e doSuper-Homem, não poderia ser alcançado através dos "baixos padrões culturais de uma maioria subdesenvolvidas. Tal civilização de mero trabalhar, comer, beber, procriar e vagamente vagabundear ou brincar não é digna de ser mantida". É uma forma de morte que se arrasta e é particularmente dolorosa para a elite cultural.

Lovecraft era bastante influenciado por Nietzsche e Oswald Spengler. Ele reconhecia a natureza cíclica orgânica de nascimento, juventude, maturidade, senilidade e morte culturais como a base da história da ascensão e queda de civilizações. Assim a crise trazida à civilização ocidental pela era das máquinas não era única. Lovecraft cita O Declínio do Ocidente de Spengler como suporte para sua visão de que a civilização havia alcançado o ciclo de "senilidade".

Lovecraft via o declínio cultural como um lento processo que abarca 500 a 1000 anos. Ele buscava um sistema que poderia superar as leis cíclicas de decadência, o que era também a motivação do fascismo. Lovecraft acreditava ser possível restabelecer um novo "equilíbrio" ao longo do 50 a 100 anos, afirmando: "Não há necessidade de se preocupar com a civilização desde que a linguagem e a tradição artística geral sobrevivam". A tradição cultural deve ser mantida acima e além das mudanças econômicas.

Em 1915, Lovecraft estabeleceu sua própria revista política chamada O Conservador, que foi lançada por 13 edições até 1923. O foco da revista era defender altos padrões culturais, particularmente no campo das Letras, mas também se opunha ao pacifismo, ao anarquismo, e ao socialismo e apoiava um "militarismo moderado e sadio" e o "pan-saxonismo", significando que "a dominação do inglês e raças aparentadas sobre as divisões inferiores da humanidade".

Como os neo-socialistas na Europa, Lovecraft se opunha à concepção materialista da história como sendo igualmente burguesa e marxista. Ele via o comunismo como "destruindo o gosto pela vida" em prol de uma teoria. Rejeitando o determinismo econômico como o motivo primário da história, ele via "aristocratas naturais" emergindo de todos os setores de uma população independentemente de status econômico. O objetivo de uma sociedade era substituir "a excelência pessoal por aquela de uma posição econômica" que é, apesar da oposição declarada de Lovecraft ao "socialismo", não obstante essencialmente o mesmo que o "socialismo ético" proposto por Henri De Man, Marcel Deat, et al. Lovecraft via o fascismo como a tentativa de alcançar essa forma de aristocracia no contexto da sociedade industrial e tecnológica moderna.

Lovecraft via a busca da "igualdade" como uma razão destrutiva para uma "revolta atávica" contra a civilização por aqueles que se sentem desconfortáveis com cultura. O mesmo motivo era a raiz do bolchevismo, da Revolução Francesa, o culto de "volta à natureza" de Rousseau, e os racionalistas do século XVIII. Lovecraft via que a mesma revolta estava sendo assumida por "raças atrasadas" sob a liderança dos bolcheviques.

Essas visões são claramente nietzscheanas, mas elas ainda mais especificamente se assemelham as de A Revolta Contra a Civilização: A Ameaça do Sub-Humano, pelo então popular autor Lothrop Stoddard, cuja obra teria certamente atraído Lovecraft, com sua preocupação pela manutenção e renascimento da civilização e rejeição de credos niveladores.

Ainda que Lovecraft rejeitasse o igualitarismo, ele não defendia uma tirana que reprimisse as massas em benefício dos poucos. Ao invés, ele via o governo de uma elite como meio necessário para alcançar os objetivos superiores de atualização cultural. Lovecraft desejava ver a elevação do maior número possível. Lovecraft também rejeitava divisões de classe como "cruéis", seja emanando do proletariado ou da aristocracia. "Classes são algo de que devemos nos livrar ou minimizar - e não algo a ser oficialmente reconhecido". Lovecraft propunha substituir a luta de classes por um estado integral que refletisse a "corrente cultural geral". Entre o indivíduo e o Estado haveria uma lealdade de mão dupla.

Lovecraft considerava o pacifismo como uma "evasão e ar quente idealista". Ele declarou o internacionalismo "uma ilusão e mito". Ele via a Liga das Nações como uma "ópera cômica". As guerras são uma constante na história e para elas devem se preparar pela conscrição universal. Historicamente, a guerra havia fortalecido a "fibra nacional", mas a guerra mecanizada havia negado o processo; na verdade a destruição tecnológica em massa da Primeira Guerra Mundial era amplamente reconhecida como disgênica. Não obstante, o europeu, e especificamente o anglo-saxão, deve manter sua supremacia pelo poder de fogo, pois "a bala de um adversário é mais doce que o chicote de um mestre". Porém, como se deve esperar de um antimaterialista, Lovecraft repudiava a causa moderna típica da guerra, aquela de lutar por supremacia mercantil, "a defesa de sua própria terra e raça sendo o objetivo adequado do armamento".

Lovecraft via a representação judaica nas artes como responsável pelo que Francis Parker Yockey chamaria de "distorção cultural". A cidade de Nova Iorque havia sido "completamente semitizada" e perdida para o "tecido nacional". A influência semítica na literatura, teatro, finanças e propaganda criaram uma cultural e ideologia artificiais "radicalmente hostis à atitude viril americana". Como Yockey, Lovecraft via a Questão Judaica como uma questão de uma "tradição cultural antagonista" mais do que como uma diferença de raça. Assim os judeus poderiam teoricamente ser assimilados a uma tradição cultural americana. O problema do negro, porém, era um de biologia e deve ser reconhecido pela manutenção de uma "linha de cor absoluta".

Esse breve esboço é suficiente, eu penso, para demonstrar que Lovecraft pertence a uma ilustre lista de gênios criativos do século XX - incluindo W. B. Yeats, Ezra Pound, D. H. Lawrence, Knut Hamsun, Henry Williamson, Wyndham Lewis e Yukio Mishima - cuja rejeição do materialismo, igualitarismo e decadência cultural os fez buscar por uma alternativa hierárquica vital tanto ao capitalismo como ao comunismo, uma busca que os levou a considerar e abraçar idéias protofascistas, fascistas ou nacional-socialistas.

Fonte: Legio Victrix

sábado, 15 de novembro de 2014

Julius Evola e Hakim Bey: Em torno do Anarquismo Ontológico

Por Juan Manuel Garayalde.



I – Anarquismo Mítico e Filosófico

Como todo pensamento político, o anarquismo tem tido diferentes pontos de vista. Uma significativa quantidade de intelectuais situam o nascimento do anarquismo no século XIX, que podemos chamar de Metamorfose de Ovídio, uma menção a um sistema político de características similares que existira no início de uma Idade de Ouro, onde não havia leis, juízes, nem nada que se pareça para legislar aos cidadãos, posto que entre eles havia uma visão similar de mundo. Também não podemos esquecer de comunidades anarquistas como a dos seguidores do Patriarca Gnóstico Carpócrates de Alexandria, que fundou comunidades cristãs no norte da África e na Espanha no século II. Diferente do anarquismo filosófico do século XIX, que situa o anarquismo no final da história humana, como um processo evolutivo, tal como foi formulado de maneira similar o paraíso comunista de Karl Marx.

Dentro desta corrente do século XIX, se destacaram autores como William Godwin, Proudhon, Max Stirner, Bakunin, etc.., Stirner, o mais importante expoente do anarquismo individualista, foi contra não só o Estado, mas também contra a Sociedade; foi mais longe do que qualquer pensador anarquista convertendo o homem no Absoluto, no nada criador, em um ser belicoso por natureza que luta pela propriedade de si mesmo, a "propriedade do único", rejeitando o Estado, a burguesia, as instituições sociais e educativas, as famílias e as leis. Destruir as ilusões para descobrir a si mesmo e ser o dono de si mesmo.

Sua principal obra, "O único e sua propriedade", foi recebida com hostilidade por Karl Marx, que a viu como ameaça a todo seu materialismo dialético, ao que se dedicou com esmero a refutar suas ideias. Assim, o anarquismo filosófico começa a ver-se como ameaça ao marxismo.

Posteriormente, será Bakunin quem desafiará o crescimento do comunismo. Este pensador anarquista fez a diferença com os outros, posto que o dito movimento conseguiu uma certa presença na luta social graças a ele. É impensável o sindicalismo anarquista sem Bakunin (recordemos a FORJA na história Argentina, e a famosa "Semana Trágica" de 1919). Europa quiçá nunca teria presenciado um movimento político anarquista organizado, se não fosse pelo trabalho ativo de Bakunin.

II – Anarquismo, Liberalismo e Socialismo

O surgimento do anarquismo filosófico está ligado à crise social pós-medieval. A burguesia começa a estabelecer relações com as velhas aristocracias, enquanto demoliam os grêmios e associações que protegiam os pequenos produtores. Com o crescimento do comércio e as manufaturas, os antigos grêmios medievais eram um grande obstáculo a esse novo desenvolvimento. Os pequenos artesãos e produtores agrícolas começaram a se encontrar desamparados frente o crescimento da competência, ao passo que crescia os direitos monopolistas nas mãos de grandes empresas industriais, agrícolas e comerciais.

Surgiram na época de transição duas correntes de protesto: o Liberalismo Radical, que pretendia reformas parlamentárias para conter o poder do Estado, e o anarquismo. Os liberais (Locke) consideravam a propriedade como um direito natural, e atribuíam a responsabilidade ao Estado de proteger a mesma de ataques internos e externos, permitindo a livre troca de mercadorias. Os anarquistas, no entanto, diziam que o Estado protege a propriedade dos ricos, e que as leis favorecem a concentração da propriedade. Para os anarquistas, se devia criar uma sociedade igualitária de produtores pequenos e economicamente autônomos, livres de privilégios ou distinções classistas, onde o Estado seria desnecessário.

O anarquismo teve sua primeira grande derrota quando Marx assume a Primeira Internacional, depois de debates acalorados com Bakunin. Essa hegemonia se manteve até 1991, com a desintegração da URSS. Desde então, surgiram novas correntes do pensamento anarquista, mas de todas elas, a que aqui queremos resgatar por sua nova orientação é o anarquismo ontológico, que tem o britânico Peter Lamborn Wilson, mais conhecido como Hakim Bey, como seu principal expoente.

III – O Anarquismo Ontológico de Hakim Bey

Torna-se dificultoso definir o conceito de anarquismo ontológico, uma vez que é uma forma de encarar a realidade, onde não se necessita teorias fechadas em si mesmas, mas ações que tendem a tirar o homem de preconceitos modernos. O anarquismo ontológico é um desafio aberto a toda sociedade atual, onde o "Eu" é posto à prova, para ver se é capaz de questionar certos comportamentos e pensamentos que se manifestam mecanicamente. Sua linguagem principal é o que Hakim Bey chama de "terrorismo poético", uma forma brusca mas profunda de rejeitar as convenções de toda sociedade organizada em torno de ilusões.

Ante a crise espiritual que afeta principalmente o Ocidente, Hakim Bey propõe um nomadismo psíquico, um retorno ao paleolítico, sendo mais realista que simbólico esse último conceito. Como ele diz, "se busca a transmutação da cultura impura em ouro contestatário". Sua frase principal é "O caos nunca morreu", onde, para ele, seria o espaço onde a liberdade se vive plenamente, enquanto vê a Ordem como a apresentação de uma série de estruturas políticas, culturais, educativas e policiais; em si, limites impostos à mente que deve possuir plena liberdade da natureza. Essa ordem atual não faz mais que aprisionar o homem, leis de uma civilização que está parada no tempo, para congelar e matar o Espírito.

Bey nos diz que o Caos é derrotado por jovens deuses, moralistas, por sacerdotes e banqueiros, senhores que querem servos e não homens livres. Seguidor de grupos sufis não muito ortodoxos, apresenta a jihad espiritual, a rebelião contra a civilização moderna.

O modelo social de luta que apresenta Hakim Bey é o da quadrilha, do grupo de saqueadores que tem sua própria lei. Esse é o sentido do paleolítico, o grupo de caçadores e coletores que percorriam pelos bosques e desertos de uma terra antiga sem deuses tiranos.

Alguns poucos anos atrás, estreou um filme no qual um dos realizadores foi influenciado pelos escritos desse autor. O filme se chamava "O Clube da Luta", onde se descreve um homem submisso ao sistema econômico e moral, que se depara a uma ruptura mental que o leva a criar um mundo real onde poderia estar fora do sistema, burlando o mesmo continuamente.

Isso nos leva a estudar a contribuição que consideramos a mais importante da obra de Hakim Bey: o conceito de TAZ, ou seja, a Zona Autônoma Temporária.

IV - Zona Autônoma Temporária (TAZ)

Existe uma coincidência semântica com o pensador tradicionalista italiano, Julius Evola: Ambos autores utilizam o termo "rebelião" como força de reação aos sintomas de declínio espiritual e material do homem.

Para Hakim Bey, o projeto de uma revolução implica um processo de transformações onde se vai de uma situação caótica até uma nova Ordem. O escritor nos diz: "Como é que todo mundo sempre termina por endireitar-se? Por que sempre toda revolução segue uma reação, como uma temporada no inferno?" (1) Dessa maneira, uma Ordem dentro do Kali Yuga implicaria retornar a uma forma de conservadorismo decadente. Implica a frustração inicial de ideais revolucionários, ante as reações naturais dos que querem voltar as coisas ao normal, saindo do Caos.

H.B. utiliza os termos "rebelião", "revolta" e "insurreição", que implicariam "um momento que salta por cima do tempo, que viola a "lei" da história". Neste caso, estamos muito perto do conceito evoliano de "idealismo mágico”.

Completando essas ideias: enquanto a revolução é um processo que vai do caos a uma ordem determinada, a rebelião que apresenta H.B. é temporal, é um ato extra-ordinário, que busca mudar o mundo e não se adaptar a ele, que busca viver a utopia e não se conformar com uma ordem.

Mas, se não há uma ordem determinada a se criar por partes dos anarquistas ontológicos, de onde parte a rebelião e para onde ela retorna uma vez desatada? Aqui H.B nos fala da TAZ, as Zonas Autônomas Temporárias, que é um lugar físico que permite justamente um desenvolvimento da liberdade interior. Devemos esclarecer que a TAZ não é um conceito abstrato, mas real e histórico.. embora sempre quis se manifestar fora da História.

Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos  para poder pertencer a um determinado sistema social.

Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos para poder pertencer a um determinado sistema social. Eles souberam criar um sistema fora do Sistema, ou seja, um anti-sistema, o caos, o lugar onde o anarquismo ontológico poderia encontrar uma causa para seu desenvolvimento. Se falarmos da gente que compunham os barcos piratas, descobrimos que eram de raças distintas: negros, brancos, asiáticos; distintas religiões, diferentes educações e classes sociais das quais foram deserdados; todos estavam em pé de igualdade, mas não uma igualdade coletivista, mas guerreira.

Esta TAZ, essa Zona Autônoma Temporária que foi a Ilha de Tortuga, não durou muitos anos, e essa é justamente a característica da TAZ, sua limitação no tempo, que segundo H.B. na melhor das hipóteses pode durar a vida de uma pessoa, mas não mais que isso, posto que o Sistema irá em sua busca para destruí-la. Vejamos como o autor defina a TAZ:

“O Taz é como uma revolta que não se envolve com o Estado, uma operação guerrilheira que libera uma área – de terra, de tempo, de imaginação – e então se autodissolve para reconstruir-se em qualquer outro lugar ou tempo, antes que o Estado possa esmagá-la.” (2)

É a estratégia da barricada que quando está a ser destruída, é abandonada e levantada em outro lugar. É o âmbito da internet, onde se entra para criticar o sistema através de uma página da web e quando essa cai, volta a aparecer em outro lugar.

Mas, sigamos com os exemplos históricos que H.B. utiliza para descrever o conceito de TAZ. Neste caso, citamos um parágrafo completo, com o objetivo de que se possa apreciar todos os elementos vulgares, artísticos, esotéricos e poéticos do pensador, que parece mesclar a realidade com a fantasia, com a utopia e com o oculto. Esta forma de escrever, que como mencionamos acima, é definido como "terrorismo poético":

“Por isso, dentre os experimentos do período entre-guerras eu me concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é menos conhecida e não foi criada para durar.

Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta, mulherengo, doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e mal- educado, emergiu da Primeira Guerra Mundial como herói e com um pequeno exército à sua disposição e comando: os arditi. Ávido por aventura, ele decidiu capturar a cidade de Fiume, na Iugoslávia, e entregá-la para a Itália. Depois de uma cerimônia necromântica com sua amante num cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e foi bem-sucedido sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.

Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por quanto tempo conseguiria mantê-la. Ele e um de seus amigos anarquistas escreveram a Constituição, que instituía a música como o princípio central do Estado. A Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas dos estaleiros de Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos antigos piratas que em tempos passados viviam nas ilhas da região e saqueavam os navios venezianos e otomanos. Os modernos uscochi foram bem-sucedidos em alguns de seus golpes malucos: vários polpudos navios mercantes italianos de repente deram à República um futuro: dinheiro em seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio se correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados sem pátria, homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira e os ossos cruzados dos piratas - depois roubado pela SS) e excêntricos reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofistas e seguidores do vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não acabava nunca. Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo. Dezoito meses mais tarde, quando o vinho e o dinheiro haviam terminado e a frota italiana finalmente apareceu e arremessou alguns projéteis contra o Palácio Municipal, ninguém tinha energia para resistir.

(...). Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas (ou o único exemplo moderno), e também, talvez, algo muito próximo da primeira TAZ moderna.”
(3)

V – A TAZ na História Argentina

Chegando a este ponto, nos perguntamos: pode se falar um exemplo da TAZ em nossa história argentina? H.B. pode ter citado um exemplo para trazer em seu trabalho? A resposta é afirmativa, e encontramos nada mais e nada menos que em nossa obra-prima da literatura argentina: El Martín Fierro.


Essa obra, cujo protagonista é uma criação do autor, representa o confronto entre a "Civilização" e a "Barbárie", e forçando um pouco os termos, entre a Modernidade e a Tradição. O tempo em que se desenvolve o poema guacheso é durante o período da organização nacional, entendido este como a adaptação de um país de caráter católico, livre e guerreiro, ao sistema constitucional liberal, laico, de dessacralização do poder político em ideologias que sustentaram e reforçaram a Modernidade.

Martín Fierro é o arquétipo da "Barbárie": o homem que não aceita uma "Civilização" alheia a sua cultura, que quer obrigá-lo a adotar uma nova forma de vida, sob o risco de perdê-la se não obedecer. Por tal motivo, Martin Fierro foge para além da fronteira sul, para viver com os índios. Lemos na obra:

“Yo sé que los caciques/amparan a los cristianos,
y que los tratan de “hermanos”
Cuando se van por su gusto
A que andar pasando sustos …
Alcemos el poncho y vamos”.

A Fronteira, os acampamentos, são a TAZ que existiu na Argentina. Ali, os homens que estavam fora da lei, encontraram a liberdade: foram aqueles que desertavam do novo exército constitucional, ladrões de gado, assassinos, escravos, rapaz jovens que fugiam de suas casas optando pela liberdade que existia para além da fronteira. Também existiram exemplos de mulheres que encantadas com os índios, tiveram famílias, e que ao regressar à civilização, não puderam se acostumar e regressaram com os índios. Martín Fierro nos descreve a vida livre:

“Allá no hay que trabajar
Vive uno como un señor
De cuando en cuando un malón
Y si de él sale con vida
Lo pasa echado panza arriba
Mirando dar güelta el sol.”

A verdade é que não havia muita diferença entre o acampamento e o meio rural. A diferença começou a ampliar-se na medida que cresciam as leis e a coerção e se perdia a liberdade que o gaúcho conhecia. A fronteira passa a se tornar não só uma válvula de escapa para tensões sociais, mas também existenciais.

Mas do arquétipo passemos também a um exemplo concreto, a um homem que a literatura retratou várias vezes em novelas, contos e obras de teatro, ao qual se acrescentou muitos relatos acerca do lugar que utilizou para escapar da "civilização". O homem que escolhemos aleatoriamente se chamou Cervando Cardozo, conhecido como Calandria por sua bela voz para o canto. Foi um gaúcho que nasceu em 1839 e faleceu - morto pela polícia- em 1879. Teve uma vida como qualquer um de seu tempo, mas a diferença é que decidiu lutar quanto a institucionalização política do país começou a querer roubar sua liberdade. Ele se incorpora com a última montonera da histórica oficial, a comandada pelo caudilho entrerriano Ricardo López Jordán, ao que a histórica oficial o acusa de ter participado do assassinado do caudilho Justo J. de Urquiza, que até então era o principal responsável pela transformação política do país. Calandria combateu junto a López Jordan, e ao ser derrotado é obrigago a incorporar-se a um exército de fronteira. Calandria não aceita e deserta. Nasce assim sua vida de fora da lei, que a viverá dentro da província de Entre Rios na denominada Selva de Montiel, onde as forças policiais jamais poderiam capturá-lo.



Aqui entramos num novo TAZ: o bosque. Em muitas tradições, os bosques representam lugares proibidos, onde abundam espíritos, criaturas fantásticas e onde se corria perigo de encontrar uma morte horrenda. um dos exemplos mais conhecidos por todos são os bosques de Sherwood onde encontraram refúgio vários "fora da lei" que logo seguiriam o famoso Robin Hood.

Em nossa terra, os bosques representam o lugar onde os gaúchos rebeldes se escondiam, donde os feiticeiros, curandeiros, bruxas e deformes tinham seu covil. É também o local onde os aquelarres se realizavam, que bem expressados estão em nossas canções populares; por exemplo em La Salamanca de Artudo Dávalos, diz o refrão "Y en las noches de luna se puede sentir, / a Mandinga y los diablos cantar”, o Bailarín de los Montes de Peteco Carabajal, en su estribillo también dice: “Soy bailarín de los montes / nacido en la Salamanca".

Aqui faremos um breve aprofundamento desse tema de La Salamanca: originalmente, a lenda parte da Espanha, da região de Salamanca. Ali se encontravam as famosas grutas dos alquimistas, magos, cabalistas, gnósticos e outros, se reuniam em segredo para evitar a perseguição da Inquisição. Como ali se efetuaram todo tipo de ensinamentos de caráter iniciático, permaneceu uma lenda negativa impulsionada pelo clero católico da época, de que ali se invocava o demônio, e é por isso que todo o processo daquele que ingressa na Salamanca até chegar a frente do Diabo é de caráter iniciático. É por isso que se diz, na atualidade, que existem duas entradas para Salamanca com resultados diferentes, uma de ascensão e outra de descida. A Salamanca é para a TAZ argentina um modelo de iniciação, conquistando "a outra porta".

Retomando, a Selva de Montiel (chamada assim pelo aspecto impenetrável da mesma) foi o refúgio de muitos, como Calandria, que resistiram à mudança pelo apego à liberdade e à tradição. Estes rebeldes conservaram em pequena escala parte da figura que representaram em outro momento os Caudilhos, posto que tinham um respeito e compreensão para com o povo e esses acabaram sendo cúmplices silenciosos das aventuras desses forasteiros.

Cito aqui um trecho da peça "Calandria" de Martiniano Leguizamón, estreada em 1896. Nesse fragmento, se fala do gaúcho rebelde frente a tumba de sua mãe:

“¡Triste destino el mío! …. ¡Sin un rancho, sin familia, sin un día de reposo! … ¡Tendré al fin que entregarme vensido a mis perseguidores! … Y ¿pa qué? ¿Por salvar el número uno? … ¿Por el placer de vivir? … ¡No, si la libertad que me ofrecen no had ser más que una carnada! No; no agarro. ¡Qué me van a perdonar las mil diabluras que le he jugao a la polesía! ¡Me he reído tanto de ella y la he burlao tan fiero! … (Riendo) ¡La verdá que esto es como dice el refrán: andar el mundo al revés, el sorro corriendo al perro y el ladrón detrás del jues! … ¡Bah … si el que no nació pa el cielo al ñudo mira pa arriba!” (4)

 Calandria não foi o único desses gaúchos rebeldes. Nosso Atahualpa Tupanqui foi um gaúcho rebelde nos anos 30. Depois da uma falida revolução radical que participou, fugiu para Entre Rios e se escondeu na Selva de Montiel. Foi nessa época que compôs a canção "Sin caballao y en Montiel".

Mas avancemos mais nessa construção da TAZ em nossa terra. Se o gaúcho rebelde é uma representação, em pequena escala, de Caudillo, onde podemos encontrar uma figura de tal magnitude que se encaixe com o modelo de anarquismo ontológico? Podemos encontrar verdadeiras surpresas em nossa história nacional. Uma delas é a do jovem Juvan Facundo Quiroga, o "Tigre de los Llanos", que pelas descrições que fizeram de sua pessoa, nos atrevemos a dizer que foi um dos primeiros líderes anarcas que houve em nossa história nacional.

Sarmiento, que conheceu Quiroga em sua etapa jovem - não a adulta onde se começaria a preocupar-se com a forma de organização a ser alcançada com a Confederação Argentina - em seu "Facundo", entre o ódio e a admiração escreve essas palavras sobre Quiroga:

“Toda la vida publica de Quiroga me parece resumida en estos datos. Veo en ellos el hombre grande, el hombre genio a su pesar, sin saberlo él, el César, el Tamerlán, el Mahoma. Ha nacido así, y no es culpa suya; se abajará en las escalas sociales para mandar, para dominar, para combatir el poder de la ciudad, la partida de la policía. Si le ofrecen una plaza en los ejércitos la desdeñará, porque no tiene paciencia para aguardar los ascensos, porque hay mucha sujeción, muchas trabas puestas a la independencia individual, hay generales que pesan sobre él, hay una casaca que oprime el cuerpo y una táctica que regla los pasos ¡todo es insufrible!. La vida de a caballo, la vida de peligros y emociones fuertes han acerado su espíritu y endurecido su corazón; tiene odio invencible, instintivo, contra las leyes que lo han perseguido, contra los jueces que lo han condenado, contra toda esa sociedad y esa organización de que se ha sustraído desde la infancia y que lo mira con prevención y menosprecio. (…) Facundo es un tipo de barbarie primitiva; no conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras …” (5)

E como todo anarca, Quiroga não era um dos homens que queriam sentar em uma mesa no escritório a governa o que muito havia lhe custado conseguir. Suas batalhas nunca finalizaram. Citamos novamente a Sarmiento:

“Quiroga, en su larga carrera, jamás se ha encargado del gobierno organizado, que abandonaba siempre a otros. Momento grande y espectable para los pueblos es siempre aquel en que una mano vigorosa se apodera de sus destinos. Las instituciones se afirman o ceden su lugar a otras nuevas más fecundas en resultados, o más confortables con las ideas que predominan. (…)
“No así cuando predomina una fuerza extraña a la civilización, cuando Atila se apodera de Roma, o Tamerlán recorre las llanuras asiáticas; los escombros quedan, pero en vano iría después a removerlos la mano de la filosofía para buscar debajo de ellos las plantas vigorosas que nacieran con el abono nutritivo de la sangre humana. Facundo, genio bárbaro, se apodera de su país; las tradiciones de gobierno desaparecen, las formas se degradan, las leyes son un juguete en manos torpes; y en medio de esta destrucción efectuada por las pisadas de los caballos, nada se sustituye, nada se establece”. (6)

Aqui vemos com claridade os conceitos de H.B. de psiquismo nômade e de retorno ao paleolítico.

VI – Anarquismo Ontológico e Tradição

Até aqui, temos traçado um paralelo entre o conceito de TAZ de H.B e nossa história nacional. Nossa tarefa agora é ver aonde o anarquismo ontológico pode nos levar.

Esta postura acreditamos que é positiva para o impulso de um niilismo ativo, que consistirá em construir bases de ação que são a TAZ: sua ação é desconstrutora, de rejeição aos valores e estruturas do pensamento da Modernidade. O anarquismo ontológico tem sabido descobrir na história os forasteiros do sistema, e esse tema é uma eterna preocupação da filosofia política contemporânea. Por exemplo, um dos pensadores mais importantes do neoliberalismo, Robert Nozick, (7) recentemente falecido, nos fala de um estado de natureza onde passo a passo se vai construindo um Estado Liberal ideal para a sociedade atual. Nos fala de uma Associação de Proteção Dominante, onde uns trabalham e outros tomam o papel de defender a comunidade dos agressores externos. De lá, se passa para o Estado ultramínimo, que tem como objetivo justamente incorporar os forasteiros.. os foras da lei. Supostamente, para Nozick, os forasteiros se integrariam à sociedade ao lhes ser oferecida proteção gratuita para que possam viver em paz, o que chamou princípio de compensação. Essa tentativa teórica fracassou, sobrando-nos exemplos reais para comprovar historicamente. O anarca não necessita que nada o projeta. E é livre para viver e morrer em sua própria lei. (8)

O Anarquismo Ontológico tem tido uma importante repercussão entre os jovens, e essa ideia do TAZ foi levada ao cinema. O filme "O Clube da Luta", com Edward Norton e Brad Pitt como atores principais, nos apresenta uma atmosfera de uma geração de jovens sem ideais, com futuro incerto e, sobretudo, com a revelação absoluta de sua própria solidão no mundo. Ali, como em Doctor Jekill e Mister Hyde, há um homem que não se atreve a se libertar de suas próprias correntes, a viver o mundo sem tratar de controlá-lo.

Um filme como Clube da Luta nos mostra que estamos sós, que não há ninguém lá fora com os braços abertos nos esperando. Um dos personagens desse filme, Tyler Durden, em seu discurso onde inaugura sua TAZ, o Clube da Luta, vivendo em um edifício abandonado em ruínas e rodeado de jovens rebeldes, diz: "Eu vejo no Clube da Luta os homens mais inteligentes e fortes, vejo tanto potencial e vejo que isso se desperdiça. Meu Deus, uma geração vendendo gasolina, servindo mesas, escravos do colarinho branco e todos esses anúncios que promovem o desejar de carros e roupas com marcas de um tipo que nos dita como devemos nos ver. Fazemos trabalhos odiosos para comprar o desnecessário, filhos no meio da História sem propósito nem lugar..

Como nos disse com certeza H.B. "O capitalismo, que afirma produzia a Ordem mediante a reprodução do desejo, na verdade se origina na produção da escassez, e só pode se reproduzir na insatisfação, na negação e alienação". (9)

E, nesse Clube da Luta, os que se integram, justamente aprendem a lutar e não a fugir.. aprendem a reconciliar-se com seu próprio passado, a vencer o medo e a angustiosa realidade materialista; e, no fundo, sempre se manifestando uma luta existencial.

Julius Evola, em sua obra "O Arco e a Clava", em oposição a certos movimentos juvenis modernos, descreve uma nova orientação denominada anarquismo de direita; aqui, nos fala de sujeitos que não perdem seu idealismo depois de passar dos 30 anos. Jovens com uns entusiasmos e impulsos imensuráveis, "com uma entrega incondicional, de um desapego a respeito da existência burguesa e dos interesses puramente materiais e egoístas". (10) Uma geração que pode ser encontrar-se no presente, que assumem valores como a coragem, a lealdade, o desprezo à mentira, "a incapacidade de trair, a superioridade ante qualquer mesquinho egoísmo e ante qualquer interesse baixo" (11); todos valores que estão por cima do "bem" e do "mal", que não caem em um plano moral, mas ontológico. É manter-se de pé com princípios imerso em um clima social desfavorável, agressivo; capaz de lutar por uma causa perdida com uma força e energia sobrenatural, que termina inspirando o terror em seus rivais, e entre esses, talvez, a um que consiga despertar frente ao que acreditava como uma ameaça.  Poucos homens como esses, seriam capazes de deter exércitos em algum penhasco da antiga Grécia, ou, nos tempos em que vivemos, tomar uma ilha do Atlântico Sul sem matar nenhum civil ou soldado inimigo.

Mas, ao contrário de H.B., a TAZ, o anarquismo ontológico só pode ser considerado como uma estratégia para a aceleração dos tempos; mas, dentro dessa TAZ, deverão recriar-se os princípios de uma Ordem, que deverá reconstruir o mundo arrasado baseando-se nos princípios da Tradição Primordial.

O que nos separará sempre da postura anarquista frente a tradicional é a aspiração de edificar um Estado Orgânico, Tradicional, e a confrontar um igualitarismo com as Hierarquias Espirituais. Como em um tempo estiveram unidos o anarquismo e o socialismo na estratégia revolucionária, no presente, o Anarquismo Ontológico segue o mesmo caminho postulado pelo pensador italiano Julius Evola, de cavalgar o tigre, de controlar o processo de decadência para estar presentes o dia em que o Tempo se detenha. Talvez, quando chegar esse dia, ambas posturas estejam unidas na tarefa de construir uma nova Civilização que será início de uma nova Era.

Em semelhança ao caso argentino, sem um Juan Facundo Quiroga que começou a desafiar a autoridade iluminista do Partido Unitário, na década de 20 do século XIX, submergindo o país na anarquia junto com outros caudilhos, não haveria chegado, uma década mais tarde, um Juan Manuel de Rosas a começar a edificar a Santa Confederação Argentina; ambos são partes do Ser e Devir; ambos partes da "Barbárie" em oposição ao anti-espírito alienante da "Civilização". O anarca e o Soberano Gibelino acabam juntos trazendo a alma do Deserto às cidades sem luz interior.

Não queremos concluir essa exposição sem voltar à nossa tradição folclórica, à TAZ que tentou resistir ao avanço da Modernidade. Hoje, aqui reunidos, temos formado uma TAZ. E quando cada um de nós se for e as luzes desse lugar se apagarem, a TAZ se dissolverá para logo se criar em outros lugares. O espírito rebelde de Martín Fierro está em nós vivendo através de todos esses anos.

Concluímos com um fragmento de um poema com o qual nos identificamos, dedicado ao gaúcho Calandria, que morreu lutando em sua própria lei e sonhando permanecer pra sempre livre em sua Selva de Montiel:

"En mí se ha reencarnado el alma de un matrero,
como la de Calandria, el errabundo aquél,
que amaba la espesura, igual que el puma fiero,
y que amplió las leyendas del bravío Montiel”

Notas:


(1) Hakim Bey. TAZ. Zona Temporalmente Autónoma. http://www.merzmail.net/zona.htm

(2) Hakim Bey. Ob. Cit.

(3) Idem.

(4) Leguizamón, Martiniano. Calandria. Del Viejo Tiempo. Edit. Solar/Hachette – Buenos Aires 1961. P..47.

(5) Sarmiento, Domingo F. Facundo. Civilización y Barbarie. Ed. Calpe – Madrid, 1924. p.106-107.

(6) Sarmiento, Domingo F. Ob. Cit. p. 123.

(7) Nozick, Robert. Anarquia, Estado y Utopía. FCE – Buenos Aires, 1991.

(8) Existe uma diferença entre o anarquismo (os "ismos") e o anarca, concepção que está mais próxima da filosofia da Max Stirner. O escritor mexicano José Luiz Ontiveros nos dá uma explicação da mesma: "O anarca é um autoexilado da sociedade. O anarca é, também, um solitário, que crê no valor incondicional e absoluto dos atos. Ao contrário do anarquista, o anarca deixou de confiar na bondade natural do ser humano e em utopias e fórmulas filantrópicas que salvam ou redimam a humanidade. Seu ser se funda no sentido original da palavra grega anarchos, "sem liderança", mas sua autoridade individualista reconhece princípios como a disciplina e a moral da guerra, seu combate é travado contra pelo menos dois ou três inimigos, seu habitat é o bosque, o fogo, a montanha onde o homem deve abandonar a máscara da sociabilidade, para retornar à experiência primeira, ao ser que se outorga a si mesmo a vontade".  Ontiveros, José Luis. Apología a la Barbarie. Ediciones Barbarroja – España 1992. p. 38.

(9) Hakim Bey. Ob. Cit.

(10) Evola, Julius. El Arco y la Clava. Editorial Heracles – Buenos Aires 1999. p. 244.

(11) Evola, Julius. Ob. Cit. p. 245.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O que é Anarquia Verde?

The Green Anarchy Collective



Este texto não é para ser "os princípios que definem" um "movimento" anarquista verde, nem mesmo um manifesto anti-civilização; é um olhar sobre idéias e conceitos básicos de membros de coletivos que dividem consigo e outros que se identificam com os anarquistas verdes. Nós entendemos e celebramos a necessidade de manter nossas visões e estratégias abertas, e discussões sempre são bem vindas. Nós sentimos que cada aspecto do que pensamos e do que somos precisam ser desafiados e permanecer flexíveis se nós quisermos crescer. Não estamos interessados em desenvolver uma nova ideologia, perpetuar uma visão de mundo única. Nós também entendemos que nem todos anarquistas verdes são especificamente contra a civilização (mas custamos a entender como alguém pode ser contra todo tipo de dominação sem pensar em suas raízes: a própria civilização). Até aí, entretanto, muito dos que usam o termo "anarquista verde" criticam a civilização e tudo que vem junto com ela (domesticação, patriarcado, divisão de trabalho, tecnologia, produção, representação, alienação, controle, destruição da vida, etc.). Enquanto alguns gostariam de falar em termos de democracia direta e jardinagem urbana nós achamos que é impossível e indesejável fazer a civilização mais "verde" e/ou fazê-la mais "justa". Nós sentimos que é importante mover radicalmente em direção a um mundo descentralizado, para desafiar a lógica e a formação de opinião da cultura-da-morte, acabar com toda mediação em nossas vidas, e destruir todas as instituições e manifestações físicas deste pesadelo. Nós queremos nos tornar não-civilizados. Em termos gerais, essa é a trajetória da anarquia verde no pensamento e na prática.

Anarquia vs. anarquismo

Um fator que nós achamos ser importante para começar este texto é a distinção entre "anarquia" e "anarquismo". Alguns poderão entender isso como uma pura questão trivial ou semântica, mas para muitos pós-esquerdistas e anarquistas anti-civilização, esta diferenciação é importante. Enquanto o anarquismo serve como um importante ponto de referência histórica do qual se extrai inspirações e lições, ele tem se tornado muito sistemático, fixo e ideológico - tudo o que a anarquia não é. Admitidamente, a anarquia tem muito pouco a ver com a orientação
social/política/filosófica do anarquismo e mais a ver com aqueles que se identificam como anarquistas. Sem dúvida, muitos de nossa “linhagem” anarquista ficariam desapontados por esta tendência em solidificar algo que deveria estar sempre fluindo. Os primeiros que se identificaram como anarquistas (Proudhon, Bakunin, Berkman, Goldman, Malatesta e outros) respondiam a seus contextos específicos com suas próprias motivações e desejos específicos. Muito frequentemente, os anarquistas contemporâneos vêem estas pessoas como representantes e fundadores da anarquia, e criam uma atitude do tipo "o que Bakunin faria" (ou melhor, "pensaria") a respeito da anarquia, o que é trágico e potencialmente perigoso. Hoje, os que se identificam como anarquistas "clássicos" se recusam a aceitar qualquer realização em um território desconhecido dentro do anarquismo (ex.: primitivismo, pós-esquerdismo, etc.) ou tendências que têm estado frequentemente em desacordo com a aproximação com o movimento de massa dos trabalhadores (ex.: Individualismo, Niilismo, etc.). Estes anarquistas rígidos, dogmáticos e extremamente não-criativos foram muito longe em declarar que o anarquismo é uma metodologia social/econômica de organizar as classes trabalhadoras. Isso é obviamente um extremo absurdo, mas tais tendências podem ser vistas nas idéias e projetos de muitos anarco-esquerdistas contemporâneos (anarco-sindicalistas, anarco- comunistas, plataformistas, federacionistas, etc.). O "Anarquismo" como se encontra hoje, é uma ideologia muito esquerdista, a qual nós devemos ir além. Em contraste, a "anarquia" é uma experiência sem forma, fluída e orgânica que abraça visões multifacetadas de libertação tanto pessoal quanto coletiva e sempre aberta. Como anarquistas nós não nos interessamos em formar uma nova estrutura ou conjunto de regras para viver e seguir, por mais "ética" ou "discreta" que pareça ser. Os anarquistas não podem oferecer um outro mundo para as pessoas, mas nós podemos levantar questões e idéias, tentar destruir toda dominação que impede nossas vidas e nossos sonhos e vivermos diretamente conectados com nossos desejos.

O que é primitivismo?

Enquanto nem todos os anarquistas verdes se identificam especificamente como "Primitivistas", muitos reconhecem a importância que a crítica primitivista tem tido nas perspectivas anti-civilização. O primitivismo é simplesmente uma análise antropológica, intelectual e experimental das origens da civilização e das circunstâncias que levaram ao pesadelo que nós atualmente vivemos. O primitivismo reconhece que na maior parte da história humana, nós vivíamos em comunidades cara-a-cara, em harmonia uns com os outros e com o nosso redor, sem hierarquias e instituições para mediar e controlar nossas vidas. Os primitivistas querem aprender através das dinâmicas que ocorreram no passado e em sociedades contemporâneas coletoras-
caçadoras/primitivas (aquelas que existiram e ainda existem fora da civilização). Enquanto alguns primitivistas querem um retorno completo e imediato às sociedades coletoras-caçadoras, muitos primitivistas sabem que um conhecimento do que foi bem-sucedido no passado não determina exatamente o que funcionará no futuro. O termo "Futuro Primitivo" criado pelo autor anarco- primitivista John Zerzan faz alusão de que uma síntese de técnicas e idéias primitivas pode ser unida com conceitos e motivações anarquistas contemporâneos para criar situações descentralizadas saudáveis, sustentáveis e igualitárias. Aplicadas não ideologicamente, o anarco-primitivismo pode ser uma importante ferramenta no projeto de des-civilização.

O que é civilização?

Os anarquistas verdes tendem a ver a civilização como os aparatos lógicos, institucionais e físicos da domesticação, controle, e dominação. Enquanto diferentes indivíduos e grupos priorizam aspectos distintos da civilização (ex. os primitivistas tipicamente se focam na questão das origens, as feministas primeiramente se focam nas raízes e manifestações do patriarcado, e os anarquistas insurrecionalistas se focam principalmente na destruição das atuais instituições de controle), muitos anarquistas verdes concordam que ela é a base do problema ou a raiz das opressões, e que precisa ser desmantelada. A ascensão da civilização pode muito bem ser descrita como a mudança dos últimos dez mil anos de uma existência profundamente conectada com a teia da vida, para outra separada e em controle do resto da vida. Antes da civilização existia um amplo tempo livre, uma considerável autonomia e igualdade sexual, uma aproximação não-destrutiva do mundo natural, a ausência de violência, nenhuma instituição mediadora ou formal, e uma saúde vigorosa. A civilização iniciou a guerra, a subjugação da mulher, o crescimento populacional, o trabalho forçado, os conceitos de propriedade, hierarquias, e praticamente todas as doenças conhecidas, isso para citar apenas algumas das suas conseqüências devastadoras. A civilização conta e começa com uma renúncia forçada do instinto da liberdade. Ela não pode ser reformada, portanto é nossa inimiga.



Biocentrismo vs. antropocentrismo

Um modo de analisar a extrema discordância entre as visões de mundo das sociedades primitivas e da civilização, é por meio de visões biocêntricas vs. antropocêntricas. O biocentrismo é uma perspectiva que nos coloca e nos conecta com a terra e a complexa teia da vida, enquanto o antropocentrismo, a visão dominante do mundo, da cultura ocidental, coloca o foco na sociedade humana excluindo outras formas de vida. Uma visão biocêntrica não rejeita a sociedade humana,
mas a retira do status de superioridade e a coloca em equilíbrio com as outras formas de vida. Ela coloca uma prioridade em uma visão biorregional, profundamente conectada com as plantas, os animais, insetos, clima, condições geográficas, e o espírito do lugar que habitamos. Não há divisão entre nós e o meio ambiente, então não pode haver objetificação ou alienação da vida. Onde a separação e a objetificação são as bases da nossa habilidade de dominar e controlar, a interconexão é um pré-requisito para uma profunda educação, atenção e compreensão. A anarquia-verde se esforça para ir além das idéias e visões antropocêntricas para um profundo respeito por toda vida e as dinâmicas dos ecossistemas que nos sustentam.

Uma crítica à cultura simbólica

Um outro aspecto de que como nós vemos e relacionamos com o mundo que pode ser problemático, no sentido de que somos separados de uma interação direta com o mundo, é a nossa mudança em direção à uma quase que exclusiva cultura simbólica. Muitas vezes a resposta a esse questionamento é "Então vocês só querem reclamar?" o que talvez seja a intenção de alguns, mas essa crítica é um olhar para os problemas inerentes com uma forma de comunicação e compreensão que confia primordialmente no pensamento simbólico ao custo (e exclusão) de outros meios sensuais e não mediados. A ênfase no simbólico é um movimento da experiência direta para a experiência mediada, na forma de linguagem, arte, número, tempo etc. A cultura simbólica filtra toda a nossa percepção através de símbolos formais e informais. Está além de simplesmente dar nome as coisas, mas ter uma relação inteira com o mundo que é visto através das lentes da representação. É questionável se os seres humanos são como “peças” do pensamento simbólico, ou se esse pensamento se desenvolveu como uma mudança ou adaptação cultural, mas o modo simbólico de expressão e compreensão é certamente limitado, e sua dependência leva à objetivação, alienação e a uma cegueira da percepção. Muitos anarquistas verdes promovem e praticam a aproximação e a reanimação de métodos dormentes e inutilizados de interação e percepção, como o toque, olfato, e telepatia, bem como desenvolver métodos únicos e pessoais de compreensão e expressão.

A domesticação da vida

A domesticação é o processo que a civilização usa para doutrinar e controlar a vida de acordo com a sua lógica. Esses mecanismos aperfeiçoados de subordinação incluem: domesticação, criação, manipulação genética, intimidação, extorsão, aprisionamento, adestramento, coerção, chantagem, escravidão, governo, terrorismo, assassinato - a lista continua, incluindo quase todas as
interações sociais civilizadas. Suas ações e efeitos podem ser examinados e sentidos por toda sociedade, reforçada pelas várias instituições, rituais e costumes. É também o processo pelo qual populações humanas antes nômades se mudaram para uma existência sedentária e assentada através da agricultura e criação de animais. Este tipo de domesticação requer uma relação totalitária com a terra, com as plantas e os animais sendo domesticados. Ao passo que em um estado selvagem toda vida divide e compete por recursos, a domesticação destrói esse balanço. A paisagem domesticada (ex.: terras pastoris/campos de agricultura, e em um nível menor, horticultura e jardinagem) requer o fim da livre partilha dos recursos que antes existiam; onde antes era "tudo é de todos", agora é "meu". No romance Ismael, o autor Daniel Quinn fala sobre essa transformação dos "largadores" (aqueles que aceitavam o que a Terra oferecia) aos "pegadores" (aqueles que exigiam da Terra o que eles queriam). Essa noção de posse é o que levou a fundação da hierarquia social enquanto a propriedade e o poder emergiam. A domesticação não somente muda a ecologia de uma ordem livre para uma ordem totalitária, como escraviza as espécies que são domesticadas. De modo geral, quanto mais um ambiente é controlado, menos sustentável ele se torna. A própria domesticação humana envolve vários tipos de posses e controles, em comparação com o modo de vida nômade e coletor. Não é de se esperar que muitas alterações feitas de uma vida nômade-coletora para vida domesticada não foram feitas de forma autônoma, mas foram feitas através da lâmina da espada e da mira das armas. Considerando que somente há 2.000 anos atrás a maior parte da população do mundo era composta de coletores-caçadores, agora não chega 0.01%. O caminho da domesticação é uma força colonizadora que tem trazido uma grande quantidade de patologias para as populações dominadas e para os criadores dessa prática. Vários exemplos incluem um declínio na saúde nutricional devido à excessiva dependência de dietas não diversificadas, quase 40 a 60 doenças integradas às populações humanas por animal domesticado (influenza, resfriado comum, tuberculose, etc.), a emergência do excedente que pode ser usado para alimentar uma população fora de equilíbrio, o que invariavelmente envolve a propriedade e o fim da partilha incondicional.

As origens e dinâmicas do patriarcado

Em relação ao início da mudança para a civilização, uns dos primeiros produtos da domesticação é o patriarcado: a formalização da dominação masculina e o desenvolvimento das instituições que a reforçam. Criando falsas distinções e divisões sexuais entre homens e mulheres, a civilização novamente cria um "outro" que pode ser "objetificado", controlado, dominado, utilizado e transformado em mercadoria. Isso ocorre paralelamente à domesticação de plantas na agricultura e
animais para pastoreio, em uma dinâmica geral, e também específica, como é o caso do controle da reprodução. Como em outras regiões de estratificação social, papéis são definidos às mulheres para que assim se estabeleça uma ordem rígida e previsível que beneficie a hierarquia. As mulheres passam a ser vistas como propriedade, assim como os campos de trigo ou as ovelhas no pasto. A posse e o controle absoluto tanto da terra quanto dos animais, escravos, crianças ou mulheres, é parte da dinâmica estabelecida da civilização. O patriarcado exige a subjugação feminina e a usurpação da natureza, nos impulsionando a aniquilação total. O patriarcado define o poder, o controle e o domínio sobre o selvagem, a liberdade e a vida. O condicionamento patriarcal domina todas as nossas interações; com nós mesmos, nossa sexualidade, nossa relação uns com os outros e a nossa relação com a natureza. Isso limita severamente o espectro de possíveis experiências. A relação interconectada entre a lógica da civilização e o patriarcado é inegável; por milhares de anos eles transformaram cada nível da experiência humana, do nível institucional ao pessoal, enquanto devoravam a vida. Para ser contra a civilização devemos ser contra o patriarcado; e para se questionar o patriarcado se deve questionar a civilização.

Divisão do trabalho e especialização

A desconexão da habilidade de cuidar de nós mesmos e prover nossas próprias necessidades é uma técnica de separação e desempoderamento perpetuada pela civilização. Nós somos mais úteis ao sistema, e menos úteis a nós mesmos, se estivermos alienados dos nossos desejos e das outras pessoas pela divisão do trabalho e especialização. Não estamos mais aptos a sair pelo mundo e fornecer a nós mesmos e a nossos queridos o alimento e as provisões necessárias para a sobrevivência. Ao invés disso, nós somos empurrados a um sistema de produção e consumo de mercadorias ao qual estamos sempre em débito. Injustiças da influência direta que se dá através do poder efetivo das várias categorias de "experts". O conceito de um especialista inerentemente cria uma dinâmica poderosa que enfraquece as relações igualitárias. Enquanto a Esquerda às vezes possa reconhecer esses conceitos politicamente, eles são vistos como dinâmicas necessárias, para manter ou regular, enquanto os anarquistas verdes tendem a ver a divisão de trabalho e a especialização como problemas fundamentais e irreconciliáveis, decisivos para as relações sociais na civilização.

A rejeição da Ciência

A maioria dos anarquistas anti-civilização rejeita a ciência como um método para compreender o mundo. A ciência não é neutra. Ela está carregada de motivos e conceitos que são
criados, e reforçam a catástrofe da dissociação, desempoderamento e letalidade corrosiva que nós chamamos "civilização". A ciência assume o afastamento, que é construído através da própria palavra "observação". "Observar" algo é percebê-lo enquanto uma pessoa é distanciada emocionalmente e fisicamente, para ter um único canal de "informação", vindo do que é observado para essa pessoa, que é definida como não sendo parte do que foi observado. Essa visão mecânica e baseada na morte é uma religião, a religião dominante do nosso tempo. O método científico lida somente com o quantitativo. Ele não admite valores ou emoções, ou, por exemplo, o modo como o ar cheira quando começa a chover – quando ela lida com essas coisas, ela lida transformando-as em números, tornando a singularidade do cheiro da chuva em uma preocupação abstrata com a fórmula química para o ozônio, tornando o modo como ele faz você sentir, em uma idéia intelectual de que as emoções são somente uma ilusão vinda do aquecimento dos neurônios. O próprio número em si não é real, mas um estilo de pensamento que foi escolhido. Escolhemos um hábito mental que foca nossa atenção em um mundo fora da realidade, onde nada possui qualidade ou vida própria. Escolhemos transformar a vida em morte. Os cientistas mais cautelosos podem admitir que o que eles estudam não passa de uma simulação limitada do mundo real complexo, mas poucos deles percebem que esse foco limitado é auto-alimentador, que ele construiu sistemas tecnológicos, econômicos e políticos que trabalham juntos, que sugam nossa realidade para eles mesmos.  Tão limitado quanto o mundo dos números, o método científico nem ao menos permite todos os números – somente os números que são reproduzíveis, previsíveis, e a mesma coisa para todos os espectadores. Claro que a própria realidade não é reproduzível ou previsível ou a mesma para todos os espectadores. Mas tampouco são mundos de fantasia derivados da realidade. A ciência não pára de nos colocar em um mundo de sonhos – ela vai além, e faz desse mundo de sonhos o nosso pesadelo, onde seus conteúdos são selecionados para serem previsíveis, controláveis e uniformes. Toda a surpresa, tudo relativo aos nossos sentidos são reprimidos. Por causa da ciência, os estados de consciência que não podem ser seguramente determinados são classificados como insanos, ou, na melhor das hipóteses, “incomuns”, e excluídos. Experiências anormais, idéias anormais, e pessoas anormais são rejeitadas ou destruídas como se fossem componentes defeituosos de uma máquina. A ciência é somente uma manifestação, que está presa a uma ânsia por um controle que nós temos desde que começamos a cultivar terras e cercar animais ao invés de percorrermos o mais imprevisível (mas mais abundante) mundo da realidade, ou “natureza”. E a partir daí, essa ânsia conduziu cada decisão, do que se diz “progresso”, até e incluindo a reestruturação genética da vida.

O problema da tecnologia

Todos os anarquistas verdes de alguma forma questionam a tecnologia. Enquanto há aqueles que ainda propõem noções de tecnologias "verdes" ou "apropriadas" e buscam análises racionais para se apegarem por formas de domesticação, muitos rejeitam completamente a tecnologia. A tecnologia é muito mais do que fios, silicone, plásticos e aço. Ela é um sistema complexo que envolve divisão de trabalho, extração de recursos, e a exploração dos outros para benefício daqueles que executaram seu processo. A interface e o resultado da tecnologia sempre é uma realidade alienada, mediada e distorcida. Apesar do que dizem os apologistas pós-modernos e outros tecnófilos, a tecnologia não é neutra. Os valores e objetivos daqueles que produzem e controlam a tecnologia estão sempre embutidos nela. A tecnologia se difere dos instrumentos simples em vários aspectos. Uma ferramenta simples e o uso temporário de um elemento em nosso meio para uma tarefa específica. Ferramentas simples não envolvem sistemas que alienam o usuário do ato. Esta separação é absoluta na tecnologia, criando uma experiência doentia e mediada, o que resulta em várias formas de autoridades. A dominação aumenta toda vez que uma nova tecnologia é criada, necessitando a construção de mais tecnologia para o suporte, abastecimento e reparo de tal tecnologia. Isto tem levado rapidamente ao estabelecimento de um sistema tecnológico complexo que parece ter uma existência independente dos humanos. Dejetos-produtos da sociedade tecnológica estão poluindo tanto nosso ambiente físico quanto nosso ambiente psicológico. Vidas são roubadas a serviço da máquina e do efluente tóxico do combustível tecnológico - ambos estão nos chocando. A tecnologia hoje tem multiplicado a si mesma, com algo semelhante a uma sinistra "sensibilidade". A sociedade tecnológica é uma infecção planetária, impulsionada adiante pelo seu próprio ímpeto, rapidamente ordenando um novo tipo de ambiente desenvolvido para a eficiência mecânica e expansionismo tecnológico. O sistema tecnológico metodicamente destrói, elimina e subordina o mundo natural, construindo um mundo que sirva somente para as máquinas. O ideal que o sistema tecnológico aponta é a mecanização de tudo aquilo que encontra.


Produção e industrialismo

Um componente-chave da estrutura tecno-capitalista moderna é o Industrialismo, o sistema mecanizado construído no poder centralizado e na exploração de pessoas e da natureza. O industrialismo não pode existir sem genocídio, ecocídio e colonialismo. Para mantê-lo, a coerção, desapropriação de terras, trabalho forçado, destruição cultural, assimilação, devastação ecológica e o mercado são aceitos como necessários ou mesmo benéficos. A padronização da vida pelo industrialismo transforma a vida em objeto e um bem de consumo, encarando toda vida como potenciais recursos.

Uma crítica do industrialismo é uma extensão natural da crítica anarquista ao estado pois o industrialismo é inerentemente autoritário. Para manter uma sociedade industrial, deve-se conquistar e colonizar terras para (geralmente) conseguir recursos não-renováveis para abastecer e lubrificar as máquinas. Este colonialismo é racionalizado pelo racismo, sexismo, e o chauvinismo cultural. No processo para adquirir esses recursos, as pessoas devem ser forçadas a saírem de suas terras. E para fazer as pessoas trabalharem nas fábricas que produzem as máquinas, elas devem ser escravizadas, devem tornar-se dependentes e sujeitas ao sistema industrial tóxico e degradante. O industrialismo não pode existir sem uma massiva centralização e especialização. A dominação de classes é uma ferramenta do sistema industrial que nega às pessoas acesso a recursos e conhecimento, transformando-as em impotentes e fáceis de explorar. Além disso, o industrialismo requer que recursos sejam distribuídos ao longo de todo globo para perpetuar sua existência, e este globalismo enfraquece e destrói a autonomia local e sua auto-suficiência. É uma visão do mundo mecânica, que está atrás do industrialismo. É essa mesma visão de mundo que justifica a escravidão, extermínio e subjugação da mulher. Deveria ser óbvio para todos que o industrialismo não é apenas opressivo com os humanos, mas que é também ecologicamente destrutivo.

Além do esquerdismo

Infelizmente, a maior parte dos anarquistas continuam sendo vistos e vendo a si mesmos como parte da esquerda. Esta tendência está mudando, visto que os anarquistas pós-esquerda e anti- civilização fazem uma distinção clara entre suas perspectivas e a falida orientação socialista e liberal. A esquerda não tem apenas provido a si mesma um monumental fracasso em seus objetivos, mas é obvio pela sua história, pelas suas práticas atuais, e sua estrutura ideológica, que (enquanto apresenta a si mesma como altruísta e promotora de "liberdade") é atualmente a antítese da libertação. A esquerda, fundamentalmente, nunca questionou a tecnologia, a produção, organização, representação, alienação, autoritarismo, moralismo, ou o progresso, e não tem quase nada a dizer sobre ecologia, autonomia, ou individualidade em alguma agenda "progressista", frequentemente usando aproximações coercivas e manipuladoras para criar uma falsa "unidade" ou a criação de partidos políticos. Enquanto os métodos e os exageros de implementação podem ser diferentes, o esforço total é o mesmo, a instituição da visão do mundo coletivizada e monolítica baseada na moral.

Contra a sociedade de massas

A maioria dos anarquistas e "revolucionários" gastam uma parte significante de seu tempo desenvolvendo esquemas e mecanismos para a produção, distribuição, julgamento e a comunicação entre um grande número de pessoas; em outras palavras, o funcionamento de uma sociedade complexa. Mas nem todos anarquistas aceitam a premissa da coordenação e interdependência social, política e econômica global (ou mesmo regional), ou a organização necessária para sua administração. Nós rejeitamos a sociedade de massa por razões práticas e filosóficas. Primeiramente, rejeitamos a representação necessária para o funcionamento de situações fora do domínio da experiência direta (modos de existência completamente descentralizados). Nós não queremos controlar a sociedade ou organizar uma sociedade diferente, nós queremos uma estrutura completamente diferente. Queremos um mundo onde cada grupo seja autônomo e decida com seus próprios meios como viver, com todas as interações baseadas em afinidades, livres e abertas, e não coercitivas. Queremos uma vida na qual de fato vivemos, não uma que sobrevivemos. A brutalidade da sociedade de massas colide não apenas com a autonomia e individualidade, mas também com a Terra. Simplesmente não é sustentável (em termos de recursos, extração, transporte, e sistemas de comunicação necessários para qualquer sistema econômico global) continuar, ou prover planos alternativos para a sociedade de massas. Novamente, a descentralização radical parece ser a chave para a autonomia, promovendo métodos de subsistência sustentáveis e não hierárquicos.

Liberação vs. organização

Somos seres empenhados para um rompimento profundo e total com a ordem civilizadora, anarquistas desejando liberdade irrestrita. Nós lutamos por liberação, por uma relação descentralizada e sem mediações com o nosso meio e com aqueles que amamos e com quem partilhamos afinidades. Os modelos organizacionais nos oferecem apenas mais da mesma burocracia, controle e alienação que recebemos da organização vigente (civilização). Enquanto talvez ocorra uma boa intenção ocasional, o modelo organizacional vem de uma mentalidade inerentemente desconfiada e paternalista, o que parece contraditório com a anarquia. As verdadeiras relações de afinidade surgem de uma profunda compreensão entre as pessoas, através de relações íntimas baseadas nas necessidades da vida diária, e não relacionamentos baseados em organizações, ideologias ou idéias abstratas. Tipicamente, o modelo organizacional reprime as necessidades e desejos individuais para "o bem do coletivo" padronizando tanto a resistência quanto o ponto de vista. Dos partidos, à plataformas, à federações, parece que à medida que a escala dos projetos aumenta, o significado e a relevância que têm pelo indivíduo e sua vida diminui. As organizações são meios para estabilizar a criatividade, o controle de dissidência e a redução de "tangentes contra-revolucionárias" (como os
quadros de elites ou lideranças determinam). As organizações tipicamente se apóiam no quantitativo, ao invés do qualitativo, e oferecem pouco espaço para a ação ou pensamento independente. Informalmente, as associações baseadas em afinidades tendem a minimizar a alienação das decisões e processos, e reduz a mediação entre nossos desejos e nossas ações. Relacionamentos entre grupos de afinidade são mais orgânicos e temporais, ao invés de fixos e rígidos.

Revolução vs. reforma

Como anarquistas, somos fundamentalmente contra governos, da mesma forma, contra qualquer espécie de colaboração ou mediação com o estado (ou qualquer instituição de hierarquia e controle). Esta posição determina uma certa continuidade ou direcionamento de estratégia, que historicamente conhecemos como revolução. Este termo, quando mal entendido, diluído e agregado por várias ideologias e agendas, ainda tem significado para os anarquistas e para as atividades práticas não-ideológicas. Por revolução, entendemos como a luta constante para mudar a paisagem social e política de um modo fundamental; para os anarquistas significa seu completo desmantelamento. A palavra "revolução" é dependente da posição da qual é direcionada, bem como a atividade "revolucionária". Novamente, para os anarquistas, isso é atividade que é direcionada para a completa dissolução do poder. A reforma, por outro lado, permite qualquer atividade ou estratégia direcionada ao ajustamento, a alteração, ou seletividade, mantendo os elementos do atual sistema, tipicamente usando os métodos e aparatos dele. As metas e métodos da revolução não podem ser ditadas nem realizadas nos contextos do sistema. Para os anarquistas, a revolução e a reforma invocam métodos e direções incompatíveis, e apesar de certas aproximações anarco- liberais, não existe continuidade. Para os anarquistas anti-civilização, as questões de atividade revolucionária desafiam e trabalham para desmantelar todo o cenário ou paradigma da civilização. A Revolução é também não um evento singular ou remoto que construímos ou preparamos para as pessoas, pelo contrário, é um estilo de vida ou prática de abordar situações.

Resistindo à mega-máquina

Os Anarquistas em geral, e em particular anarquistas-verdes, adotam a ação direta em vez de formas mediadas ou simbólicas de resistência. Vários métodos e abordagens, incluindo subversão cultural, sabotagem, insurreição, "violência" política, (embora não sejam limitados somente a esses métodos) têm sido e permanecem como parte do arsenal de ataque anarquista. Uma única tática não pode ser efetiva em alterar significantemente a ordem ou sua trajetória. Mas estes métodos, combinados com transparência e crítica social, são importantes. A subversão do sistema pode ocorrer do sutil ao dramático e pode ser um importante elemento de resistência física. A sabotagem sempre tem sido uma parte vital das atividades anarquistas, tanto na forma de vandalismo espontâneo (público ou noturno), ou através de uma coordenação ilegal e secreta de células autônomas. Recentemente grupos como a Frente de Libertação da Terra (ELF, na sigla em inglês) um grupo ambientalista radical mantido por células autônomas, tendo alvo aqueles que lucram com a destruição da Terra, têm causado milhões de dólares em danos a lojas e escritórios corporativos, bancos, madeireiras, laboratórios de engenharia genética, veículos e casas luxuosas. Estas ações, que frequentemente são incêndios, têm inspirado muitos à ação, e são meios efetivos de não só trazer atenção à degradação ambiental, mas também como detentores de específicos destruidores da Terra. A atividade insurrecionária, ou a proliferação de momentos insurrecionais que podem causar a ruptura da paz social da qual a raiva espontânea das pessoas pode ser liberada e possivelmente propagada em condições revolucionárias, também têm aumentado. A revolta de Seattle em 1999, Praga em 2000 e Genova em 2001, foram todas (de diferentes maneiras) faíscas de atividades insurrecionais, que, embora limitados em alcance, podem ser vistos como tentativa para mover em direções insurrecionárias e fazer um rompimento qualitativo com o reformismo e todo o sistema escravista. A violência política, incluindo o ataque a indivíduos responsáveis por atividades específicas ou pelas decisões que levam a opressão, também tem sido um foco para os anarquistas historicamente. Enfim, considerando a imensa realidade e toda extensão penetrável do sistema (socialmente, politicamente, tecnologicamente), ataques a redes tecnológicas e na infra-estrutura da mega-máquina são de interesse para anarquistas anti-civilização. Indiferente da aproximação ou intensidade, as ações militantes unidas com uma análise profunda da civilização estão crescendo
.
A necessidade de ser crítico

À medida que a marcha da aniquilação global avança, a sociedade se torna mais doente, perdemos o controle de nossas vidas e falhamos em criar uma resistência significativa contra a cultura-da-morte. É vital para nós, sermos extremamente críticos com os movimentos "revolucionários" do passado, com esforços atuais e com nossos próprios projetos, não podemos repetir perpetuamente os erros do passado ou sermos cegos para nossas próprias deficiências. O movimento ambientalista radical está repleto de campanhas com um só foco e gestos simbólicos e a cena anarquista está infestada por tendências esquerdistas e liberais. Ambos continuam insistindo
em gestos ativistas sem significado, raramente questionando sua (in)eficiência. Frequentemente a culpa e o auto-sacrifício - ao invés de sua liberação e liberdade - guiam esses benevolentes reformadores sociais irrealistas, enquanto eles continuam por um caminho que foi esboçado por falhas diante deles. A Esquerda é uma ferida inflamada na bunda da sociedade, os ambientalistas não têm obtido sucesso na preservação de nem mesmo frações de áreas selvagens, e os anarquistas raramente possuem algo provocativo para dizer, deixemo-os em paz. Enquanto alguns podem discutir contra o criticismo porque ele é “analítico”, qualquer verdadeira perspectiva radical veria a necessidade da análise crítica, em mudar nossas vidas e o mundo que habitamos. Aqueles que desejam acalmar um debate até o “depois da revolução”, contendo toda a discussão em debates vagos e insignificantes, e reprimir a crítica das estratégias, táticas, ou idéias, não estão indo a lugar algum, e só vão nos atrasar. Um ponto essencial de qualquer perspectiva anarquista radical deve ser colocar tudo em questão, obviamente incluindo suas próprias idéias, projetos e ações.

Influências e solidariedade

A perspectiva anarquista-verde é diversa e aberta, contudo, contém alguns elementos contínuos e primários. A anarquia-verde tem sido influenciada por anarquistas, primitivistas, luditas, insurrecionalistas, situacionistas, niilistas, ecologistas profundos, biorregionalistas, ecofeministas, várias culturas indígenas, lutas anti-colonialismo, os "ferais", os selvagens e a Terra. Os anarquistas, obviamente, contribuem para o impulso anti-autoritário, que desafia todo o poder num nível fundamental, empenhados por relações verdadeiramente igualitárias e promovendo comunidades de apoio mútuo. Os anarquistas-verdes, entretanto, ampliam as idéias de não- dominação para todas as formas de vida, não apenas humanos, indo assim além das análises anarquistas tradicionais. Dos primitivistas, os anarquistas-verdes são instruídos com um olhar crítico e provocativo das origens da civilização, para que entendam que confusão é essa e como chegamos a ela, para ajudar a apontar uma mudança de direção. Inspirados nos Luditas, os anarquistas-verdes reacendem uma orientação de ação direta anti-tecnológica-industrial. Os insurrecionalistas introduzem uma perspectiva onde esperam não uma crítica positiva e verdadeira, mas identifica espontaneamente as instituições da civilização que atam nossas liberdades e desejos. Os anarquistas anti-civilização devem muito aos Situacionistas, e suas críticas da alienante sociedade da mercadoria, a qual podemos romper nos conectando de forma direta com nossos sonhos e desejos não-mediados.
A recusa niilista em aceitar qualquer realidade demonstra o quão profundo é o mal dessa sociedade e oferece aos anarquistas verdes uma estratégia que não necessita oferecer visões da sociedade, mas ao invés disso, focalizar em sua destruição. A Ecologia Profunda, apesar de sua tendência misantrópica, instrui a perspectiva anarquista- verde com um entendimento de que o bem-estar e a prosperidade de toda a vida estão ligados ao conhecimento do valor inerente e intrínseco do mundo não-humano independente de valor útil. A apreciação da ecologia profunda pela riqueza e a diversidade da vida contribui para a realização que a atual interferência humana com o mundo não-humano é coercivo e excessivo, com uma condição que se agrava rapidamente. O Biorregionalismo nos conduz a uma perspectiva de viver dentro de nossas próprias biorregiões, e nos tornarmos intimamente conectados com a terra, a água, o clima, as plantas, os animais, e outros espécimes da biorregião. O Ecofeminismo tem contribuído para a compreensão das raízes, dinâmicas, manifestações e realidade do patriarcado, e seus efeitos na terra, nas mulheres, e na humanidade em geral. Recentemente, a separação destrutiva do homem da Terra (civilização) tem provavelmente sido articulado mais claramente e intensamente por ecofeministas. Os anarquistas anti-civilização têm sido profundamente influenciados por várias culturas indígenas e nativas ao longo da história e por aquelas que ainda existem. Enquanto humildemente aprendemos e incorporamos técnicas sustentáveis de sobrevivência e maneiras saudáveis de interagir com a vida, é importante não igualar ou generalizar povos nativos e suas culturas, respeitar e nos esforçar a entender sua diversidade sem agregar identidades e características culturais. Solidariedade, apoio, e tentativas de se conectar com nativos e lutas anti-coloniais, que têm sido a linha de frente da luta contra a civilização, são essenciais enquanto nós nos esforçamos para o desmantelamento da máquina-de-morte. Também é importante entender que nós, de certa forma, descendemos de povos nativos que foram violentamente retirados de suas conexões com a terra, e por isso devemos fazer parte das lutas anti-coloniais. Somos inspirados também pelos ferais, aqueles que escaparam da domesticação e se reintegraram com o selvagem. E, claro, com os seres selvagens que tornam possível este lindo organismo azul e verde chamado Terra. É também importante lembrar que, enquanto muitos anarquistas-verdes extraem influência de fontes similares, anarquia-verde é algo muito pessoal para aqueles se identificam ou se conectam com estas idéias e ações. As perspectivas derivam de nossas próprias experiências de vida na cultura-de-morte (civilização), e os próprios desejos fora do processo de domesticação, são ultimamente os mais vividos e importantes no processo de descivilização.

Retorno ao selvagem e reconexão

Para a maioria dos anarquistas verde/primitivistas/anti-civilização retorno ao selvagem e reconexão com a terra é um projeto de vida. Isto não é limitado à compreensão intelectual ou práticas de habilidades primitivas, mas, em vez disso, é um profundo entendimento das penetráveis maneiras pelas quais somos domesticados, fraturados, e deslocados de nós mesmos, dos outros e do mundo, o enorme e diário desafio de sermos íntegros novamente. Retorno ao selvagem tem um componente físico, o qual envolve habilidades resgatadas e desenvolvimento para uma coexistência sustentável, incluindo como obter alimento, abrigo, e nos curar com as plantas, e materiais que existem naturalmente em nossas biorregiões. O retorno ao selvagem também inclui o desmantelamento das manifestações físicas, dos aparatos, e da infra-estrutura da civilização. O retorno ao selvagem tem um componente emocional que envolve nos curar e curar os outros das profundas feridas de 10.000 anos, aprendermos a viver juntos em comunidades não-hierárquicas e não-opressivas, e desconstruir a mentalidade domesticada do atual modelo social. Retorno ao natural envolve priorizar as vontades e experiência direta sobre a mediação e alienação, repensando toda dinâmica e o aspecto da nossa realidade, conectando com nossa fúria feral para defender nossas vidas e lutar por uma existência livre, desenvolvendo mais confiança em nossa intuição, estando mais conectados com nossos instintos, recuperando o balanço que foi virtualmente destruído depois de milhares de anos de controle patriarcal e domesticação. O retorno ao natural é o processo de se tornar "des-civilizado".

Pela destruição da civilização!
Pela reconexão com a vida!

Traduzido pelo Coletivo Erva Daninha
Contato: ervadaninha@riseup.net